• Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em Setembro…

    Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em setembro. Esse mês, que me viu chegar ao mundo, tornou-se também uma espécie de espelho da minha própria vida: um tempo de começos e encerramentos, de alegrias e dores, de plenitude e de ausência. Nasci a conversar com a morte e, desde então, essa presença silenciosa caminha comigo. Cada aniversário me lembra, de modo discreto e firme, que logo passarei mais tempo não sendo do que sendo; mais tempo ausente do que presente. Mas essa constatação não é um convite ao desespero. É, antes, um chamado à consciência de que a vida é breve e, por isso, valiosa. Pensar no fim não me paralisa: fortalece em mim a urgência de viver.

    Ao longo da caminhada até aqui, vivi coisas boas e coisas não tão boas. O balanço da vida não é feito apenas de vitórias ou derrotas, mas da mistura de ambas. Fiz amigos e amigas, conheci uma ou duas pessoas que marcaram profundamente minha história, sorri com intensidade, chorei com amargura, senti alegria, medo, frio, calor. Experimentei momentos de plenitude e também períodos de vazio, quando fiquei ressecado pelas dores da vida, sem nada — exatamente nada — sentir. Mas, mesmo nesses intervalos de anestesia, a vida estava lá, latejando, esperando o próximo passo, o próximo suspiro.

    Fiz poesia, escrevi prosas, tive um livro, plantei um filho no mundo e publiquei uma árvore. Essas ações não são apenas símbolos de realização pessoal, mas de um compromisso silencioso com a existência. Conheci ódio, amor, raiva, decepção; perdi muito mais do que ganhei, e cada perda deixou uma marca que me ensinou algo. Fiquei em coma, capotei com um ônibus, sofri com sonambulismo, fiz um rap, aprendi e penso que ensinei algo. Cada experiência, boa ou ruim, moldou a pessoa que sou hoje. Ao olhar para trás, vejo que mesmo o que pareceu destrutivo guardava lições sobre o valor de estar vivo.

    Falta-me, ao certo, inimigos, mas devo tê-los; pelo menos espero que sim. Essa frase, meio irônica, reflete uma vida mais voltada ao encontro do que ao confronto. Atravessei a nado do cais da Tavares de Lira para a Redinha, pulei da Ponte Velha de Igapó, andei de bicicleta até desmaiar. São lembranças de desafios, de experimentos com os limites do corpo e do medo. Esses momentos não são simples aventuras: são marcas do desejo de sentir, de tocar o extremo da vida, de provar que estou aqui, inteiro, respirando.

    Tudo isso é viver. E, como todo mundo, eu vivi. Vivi… vivi… e a morte segue comigo. Mas a morte, aqui, não é personagem de um drama sombrio; é antes uma mestra silenciosa. Ao me lembrar que sou finito, ela me ensina o valor do instante. Ao recordar que tudo acaba, ela me mostra o que merece começar. Ao falar dela, falo da vida. Ao refletir sobre o fim, descubro o sentido do meio.

    Não há nada de mórbido nesse diálogo com a morte. Há lucidez. Há força. Há um reconhecimento de que cada segundo importa. Pensar no fim não diminui a importância do caminho; pelo contrário, engrandece-o. Sem a morte, a vida perderia urgência, perderia sabor. Se eu não soubesse que cada aniversário é também um lembrete da finitude, talvez desperdiçasse mais dias, mais encontros, mais gestos. Mas, consciente de que o tempo é curto, busco fazer cada instante contar.

    Essa é a lição que carrego e que tento transmitir: falar da morte é, na verdade, uma forma de falar da vida. É reconhecer que ela não é infinita, e que justamente por isso precisa ser intensa, honesta, experimentada. É entender que cada dor, cada alegria, cada vazio e cada conquista são parte de um mosaico irrepetível. É aceitar que tudo o que é maravilhoso e ruim nasce e morre — assim como nós.

    Hoje, olhando para trás, percebo que cada salto, cada travessia, cada poesia, cada lágrima e cada sorriso foram, no fundo, declarações de vida. E é essa consciência que me fortalece: não temo a morte porque aprendi, com ela, a valorizar o que sou agora. A morte é companheira, mas a vida é o caminho. Pensar no fim não me impede de caminhar; ao contrário, me orienta. É o fim que dá sentido ao meio, é a certeza do último ato que dá força aos capítulos.

    Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em setembro, inclusive eu. Nasci a conversar com a morte, mas vivo a aprender com ela a importância de estar vivo. Cada aniversário é um lembrete de que o tempo não volta, e cada lembrança é uma prova de que estive aqui. Vivi. Vivi. E sigo vivendo.


  • O Som de um Trovão, de Ray Bradbury, o efeito borboleta e a teoria do caos

    Ray Bradbury, em seu conto “O Som de um Trovão”, publicado em 1952, constrói uma narrativa de ficção científica que permanece atual e provocativa. O enredo apresenta uma empresa que oferece viagens no tempo a caçadores de aventuras. O personagem central, Eckels, contrata esse serviço para viver a experiência de caçar um dinossauro no período cretáceo. A partir daí, Bradbury desenvolve uma reflexão literária que transcende a fantasia, tocando em temas filosóficos, científicos e éticos.

    A viagem no tempo é regida por uma regra fundamental: não se pode alterar nada no passado, pois qualquer modificação, mesmo mínima, pode repercutir no futuro. A advertência, entretanto, é violada. Eckels, tomado pelo medo, sai da trilha delimitada e, em um gesto aparentemente insignificante, pisa em uma borboleta pré-histórica. Ao retornar ao presente, o grupo percebe que o mundo está diferente: a língua, a política e a organização social sofreram alterações.

    O “som do trovão”, título e metáfora, não é apenas o disparo que mata o dinossauro ou o estampido final da narrativa, mas também a reverberação de consequências que um ato pequeno pode produzir. Aqui, Bradbury antecipa a metáfora científica conhecida como efeito borboleta, formulada décadas depois por Edward Lorenz, no âmbito da meteorologia e da teoria do caos.

    O efeito borboleta sustenta que uma mínima variação nas condições iniciais de um sistema pode desencadear resultados completamente imprevisíveis. No conto, a morte da borboleta no passado desencadeia transformações drásticas no futuro. Na vida real, o conceito se conecta à teoria do caos, que mostra como sistemas complexos, como o clima, a economia ou até as relações humanas, podem ser sensíveis a pequenas alterações.

    A genialidade de Bradbury está em transformar uma narrativa de ficção em reflexão existencial. Sua história alerta que os gestos humanos, por menores que pareçam, têm potência de modificar destinos. No cotidiano, isso significa que escolhas banais — uma palavra dita ou calada, uma ação praticada ou omitida — podem gerar efeitos de longo alcance, influenciando vidas de formas invisíveis e imprevisíveis.

    O trovão, nesse contexto, é a metáfora do impacto. Assim como um raio corta o céu e seu som se espalha à distância, as ações humanas repercutem em ondas. O conto mostra que o tempo não é apenas uma linha rígida, mas um campo de possibilidades delicadas, onde cada passo importa. A borboleta pisada é um aviso literário de que não existe gesto inócuo.

    No plano social, essa mensagem ganha ainda mais força. Pequenos atos de intolerância podem gerar correntes de ódio. Pequenas atitudes de solidariedade podem desencadear redes de empatia. Assim como no conto o presente foi alterado pela morte de um ser minúsculo no passado remoto, também em nossa vida social e política pequenas decisões acumuladas moldam o destino coletivo.

    O cotidiano, muitas vezes, nos faz acreditar que nossas ações são irrelevantes. Contudo, a teoria do caos e a metáfora do conto de Bradbury desconstroem essa ilusão. Somos parte de um sistema interconectado, no qual uma escolha individual pode ter ressonâncias globais. O “som do trovão” ecoa como advertência ética: pensar antes de agir, medir as consequências e compreender que o tempo é tecido por nossas escolhas.

    Ao final, O Som de um Trovão não é apenas um conto de ficção científica. É uma parábola moderna sobre responsabilidade, destino e interdependência. Bradbury convida o leitor a reconhecer que viver é participar de um jogo caótico, onde cada gesto reverbera como trovão e cada borboleta pode transformar a história.


  • As terras da Vila de Índios de Extremoz sob duas facções: disputas políticas nos processos de territorialização indígena no Rio Grande do Norte (1760-1858)

    A pesquisa do historiador e professor Pedro Pinheiro é sobre nós, sobre descobrir o lugar a partir de novos olhares e compreender a quem, de fato, pertenceu o território. Vou destacar os pontos que considero cruciais da leitura, sem a pretensão de esgotar a tese, deixando a vocês a incumbência de conhecê-la integralmente.

    A tese de Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, intitulada As terras da Vila de Índios de Extremoz sob duas facções: disputas políticas nos processos de territorialização indígena no Rio Grande do Norte (1760-1858), oferece uma contribuição fundamental para a historiografia potiguar e brasileira. O trabalho evidencia como a territorialização indígena foi decisiva na configuração social, política e espacial da Vila de Extremoz e como, ao longo do século XIX, ocorreu um processo sistemático de invisibilização desses povos.

    O autor parte da noção de território social, inspirada em Paul Little, para demonstrar que o espaço de Extremoz foi construído por diferentes grupos indígenas – Potiguara, Panati, Caboré e Janduí – que, após a “Guerra dos Bárbaros” (1682-1713), foram reunidos e consolidaram uma nova territorialidade coletiva. Esse território, mais que um espaço físico, representava identidade, memória e resistência.

    Um dos pontos centrais da tese é a demonstração de que os indígenas não foram sujeitos passivos, mas protagonistas. Eles recorreram à justiça, ocuparam cargos municipais e militares, reivindicaram sesmarias e atuaram ativamente em processos políticos, como na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador. Personagens como Hipólito da Cunha e Ignácio Duarte surgem como exemplos de lideranças que articularam estratégias de defesa coletiva e de participação no poder local.

    No entanto, o século XIX marcou o avanço de mecanismos de desterritorialização. Leis como o Regulamento da Civilização dos Índios (1845) e a Lei de Terras (1850), somadas a decisões imperiais, legitimaram o esbulho das áreas indígenas sob o argumento de que esses povos haviam “desaparecido” ou se “misturado à população civilizada”. Esse discurso de “extinção” foi amplamente difundido por presidentes de província, como Morais Sarmento, no Rio Grande do Norte, em 1847.

    A tese revela, contudo, que esse “apagamento” foi mais político e discursivo do que real. Nos registros de batismos, casamentos, vereações e processos judiciais, a presença indígena permanece constante. Mesmo diante da perseguição, muitos passaram a se identificar como “caboclos” como estratégia de sobrevivência social, sem que isso significasse o abandono de sua ancestralidade.

    Outro aspecto relevante é a análise das disputas por terras. Documentos de sesmarias e processos judiciais comprovam que as terras de Extremoz pertenciam originalmente ao patrimônio indígena. Diversos colonos e fazendeiros tentaram apropriar-se delas, mas frequentemente encontraram resistência legal e comunitária organizada pelos próprios índios.

    Pedro Pinheiro demonstra, assim, que a narrativa de que os indígenas “não precisavam de terras” ou eram “preguiçosos” foi uma construção racista usada para justificar sua exclusão. Na prática, eram eles os legítimos donos do território, sustentando a vida comunitária, cultivando as áreas e defendendo seu espaço de geração em geração.

    A história de Extremoz, conforme revelada na tese, é exemplar de um fenômeno mais amplo no Brasil: a tentativa de invisibilizar os povos originários para consolidar um modelo agrário concentrador. O autor conclui que, longe de desaparecer, os indígenas se reinventaram, preservaram sua territorialidade e continuam sendo os verdadeiros donos das terras historicamente usurpadas.

    Essa tese não apenas reconta a história de Extremoz, mas desmistifica séculos de silêncio. Mostra que a terra, tão disputada, guarda memória, e nela está inscrita a marca dos povos originários. Trata-se de uma obra essencial para compreender como o Rio Grande do Norte – e o Brasil – foram moldados por processos de resistência indígena que ainda ecoam no presente.


  • Medo e Delírio e a Emoção de Uma Leitura Atemporal

    O livro Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream), de Hunter S. Thompson, é uma obra-prima que atravessa gerações. Mais do que narrativa, é uma experiência imersiva no chamado “jornalismo gonzo”, estilo criado por Thompson que mistura reportagem com subjetividade, realidade com delírio.

    A trama acompanha Raoul Duke (alter ego do autor) e seu advogado, Dr. Gonzo, em uma viagem a Las Vegas: primeiro para cobrir uma corrida de motos, depois uma conferência sobre narcóticos. O que se desenrola, porém, vai muito além da pauta jornalística: uma espiral de alucinações, paranoia e uma busca desesperada pelo “Sonho Americano”. A prosa de Thompson é uma tempestade de palavras, um caos controlado que espelha tanto a mente enlouquecida do protagonista quanto a própria desordem de seu tempo.

    Ler este livro, escrito um ano antes do meu nascimento, foi como abrir uma cápsula do tempo. Um artefato que carrega não apenas os excessos de uma época, mas sobretudo a desilusão de uma geração. Thompson transforma experiências pessoais em reflexão universal, expondo o fracasso dos ideais dos anos 60. O resultado é uma narrativa atemporal: não apenas sobre drogas ou Las Vegas, mas sobre a perda de um horizonte, sobre a melancolia escondida sob o riso e o caos.

    A cada página, senti uma ponte com o passado. O desespero, a ironia e a intensidade do texto ressoaram de forma surpreendentemente atual, como se as angústias de então ainda ecoassem em nosso presente. Esse diálogo entre épocas é o que torna a leitura tão poderosa: a constatação de que os sonhos e desilusões de uma geração podem ser compreendidos, revisitados e sentidos por outra, mesmo décadas depois.

    Medo e Delírio é um livro que desafia convenções, exige entrega e mente aberta para se deixar conduzir por sua loucura. Minha leitura oscilou entre gargalhadas e reflexões profundas, entre o absurdo e a revelação. É um clássico que permanece vivo, um retrato cru e honesto das frustrações de uma era e, paradoxalmente, das nossas também. O fato de ter sido escrito antes do meu nascimento acrescenta ainda mais força à experiência: como se a obra tivesse me aguardado, pronta para me contar sua história e me incluir em sua jornada atemporal.


  • Entre o ronco da alma e a Poesia do asfalto

    Gostar de motos é mais do que pilotar. É sentir o corpo fundido à máquina, o vento fatiando a pele, o tempo escorrendo pelas mãos. O asfalto não é apenas estrada: é livro aberto, onde cada quilômetro escrito com pneus e poeira guarda uma metáfora. A moto, esse bicho de metal e liberdade, não é veículo — é rito, é confissão, é oração em alta rotação. Quem vive sobre duas rodas compreende o silêncio das madrugadas, a eloquência do vento, a sabedoria de se perder para encontrar-se.

    E se a moto é corpo em movimento, a poesia é alma em combustão. Quando os versos se fazem estrada, cada palavra é uma curva, cada estrofe é um horizonte. É possível ser centauro urbano, cruzando cidades e ideias com o coração ligado na ignição e a mente rascunhando metáforas na paisagem. O capacete protege o crânio, mas não barra os sonhos: por dentro dele, borbulham lembranças, rimas, promessas que nunca couberam no papel. A poesia acompanha o motociclista como sombra, como ponte, como companheira invisível de todas as rotas.

    Viver, nesse contexto, é uma arte em três atos: moto, poesia e liberdade. A vida se revela não em destinos, mas em percursos. Há quem conte os dias; nós contamos os quilômetros e os versos. Quando falta combustível, sobra inspiração. Quando o mundo pesa, a aceleração devolve o fôlego. No trajeto, aprendemos a cair — e, principalmente, a levantar. A vida sobre rodas é feita de arranhões, consertos, mapas improvisados. A poesia, por sua vez, é o que costura os pedaços, dá sentido às pausas e transforma cada buraco em metáfora.

    Há dias em que a estrada é flor. Noutros, é pedra. Mas há beleza nos dois. O prazer de pilotar é também um exercício de escuta: o ronco do motor tem ritmo, tem cadência, quase sempre canta o que a alma quer dizer. É nesse som, meio bruto, meio místico, que mora a voz do coração inquieto. É nesse silêncio que mora a palavra que ainda não nasceu. Gostar de motos é, de certa forma, gostar da vida em sua versão mais crua e ao mesmo tempo mais intensa. Gostar de poesia é não se conformar com a realidade, mas moldá-la com beleza e crítica.

    A vida em prosa é muito reta; por isso prefiro vivê-la em curvas. No tanque da moto levo água, mas no peito carrego sonhos. Na mochila vão cadernos, rabiscos, letras e paisagens. Em cada parada, um poema. Em cada farol, um instante de contemplação. É nos detalhes do caminho — no cachorro que cruza a rua, no pôr do sol refletido no espelho, na árvore que insiste em crescer ao lado do ferro velho — que a poesia acontece. Não precisa de palco. Basta um banco duro, um motor aquecido e olhos abertos.

    A moto ensina sobre impermanência. A poesia, sobre eternidade. E a vida? A vida é a estrada que une as duas: rápida demais para ser ignorada, intensa demais para ser vivida com pressa. Entre o ronco da alma e o verso do asfalto, há um poeta de jaqueta, um viajante de olhos acesos, um ser que não teme as tempestades — porque aprendeu que até a chuva, às vezes, rima com liberdade.


  • Lê, por quê?

    A leitura, em sua essência, é um portal para o mundo — mais que entretenimento, é uma ferramenta vital que transforma, conecta e liberta. Ela ultrapassa o simples lazer e se estabelece como um pilar fundamental do desenvolvimento humano, individual e coletivo. Ao mergulhar em narrativas e textos, o leitor não apenas busca prazer, mas também se fortalece com conhecimento, fazendo da leitura um ato de empoderamento e autodescoberta.

    Ler não é uma obrigação — é, sobretudo, um convite ao encantamento. No silêncio das páginas, o leitor encontra abrigo e embarca em jornadas sem sair do lugar. Vive emoções de personagens reais ou imaginários e se permite sonhar. Essa dimensão lúdica é a porta de entrada para o hábito leitor: desperta a curiosidade, alimenta a imaginação e convida à exploração de universos diversos — dos épicos aos íntimos, da ficção ao real. Perder-se em uma história é, por si só, um gesto de liberdade e uma celebração da criatividade.

    Mas a leitura vai além do encantamento: é também a chave para o saber. Cada livro guarda um tesouro — seja ele científico, histórico, filosófico ou artístico. Ao dedicar-se à leitura, o indivíduo constrói uma base sólida de informações, aprimorando sua visão crítica e sua capacidade de interpretar o mundo. Textos jornalísticos, ensaísticos ou acadêmicos ajudam a decifrar as complexidades da sociedade, enquanto a literatura aprofunda nossa empatia e nos conecta a diferentes culturas, tempos e sentimentos. O conhecimento adquirido pelos livros fundamenta o pensamento reflexivo, fomenta a inovação e impulsiona o progresso coletivo.

    O livro é mais do que um objeto: é um santuário de ideias, um espaço sagrado onde os grandes feitos e dilemas da humanidade se preservam. Ali, pensamentos ganham forma e se perpetuam, atravessando gerações. Um livro pode ser mentor, confidente ou farol — oferecendo direção em momentos de incerteza. Ele nos desafia a pensar, nos provoca a crescer e nos insere numa longa e rica conversa com o tempo. Ao virar uma página, não apenas lemos: participamos da construção do nosso entendimento do mundo e de nós mesmos.


  • Eu sei quem você é

    Pessoas entram e saem das nossas vidas o tempo todo — amores, amizades, colegas de trabalho. Algumas deixam marcas boas, outras apenas um vazio. E embora essa dança de chegadas e partidas pareça natural, há algo que sempre me inquieta: aquelas que, ao partir, dizem “agora sei quem você é”… e vão embora sem me contar quem sou.

    As despedidas carregam, por si só, um peso singular. Mas essa frase, dita tantas vezes por pessoas que amei ou confiei, transforma o adeus em algo mais doloroso: um julgamento silencioso. Não é a ausência física que mais machuca — é o silêncio sobre o que foi supostamente descoberto.

    Como podem ir embora levando uma verdade que dizem ter percebido em mim, enquanto eu sigo tentando entender a mim mesmo? Eu, protagonista da minha própria história, ainda caminho às cegas, tateando os contornos do meu ser. E eles, que afirmam ter me enxergado com clareza, somem sem deixar rastro — como quem leva um espelho e me priva da chance de me ver.

    A crueldade está justamente nisso: não na descoberta, mas no segredo. Se sabiam quem eu sou, por que não disseram? Por que escolheram partir com essa certeza sem me dar a chance de dialogar com ela? É um abandono duplo — da presença e da possibilidade de autoconhecimento.

    Talvez o erro esteja em esperar que o outro nos defina. A identidade é fluida, mutável, um rio em constante movimento. Ainda assim, quando tantos repetem a mesma sentença — “agora sei quem você é” —, não tem como não se perguntar: será que existe em mim algo evidente para os outros, mas invisível aos meus próprios olhos?

    E, se sim, por que essa verdade me é negada?

    A dor da ausência é real. Mas a dor do não saber — essa sim, é a mais profunda. Essa frase, solta no ar como um enigma não resolvido, se torna um eco que me persegue. Uma promessa de revelação jamais cumprida.

    Resta-me a reflexão solitária. Sigo tentando decifrar os rastros deixados nas entrelinhas de cada adeus. Procuro pistas nas memórias, nos gestos, nas palavras ditas e nas que foram silenciadas. Sigo em busca de mim — ainda que os que foram embora tenham levado consigo a bússola.

    Porque, no fim, talvez minha essência não precise ser confirmada por ninguém. Talvez, um dia, ela simplesmente floresça. E que eu, enfim, diga a mim mesmo: “Agora sei quem eu sou.”


  • O Amor Enjaulado: A Hipocrisia Social em “O Segredo de Brokeback Mountain”

    O Segredo de Brokeback Mountain (2005), dirigido por Ang Lee, não é apenas um romance trágico. É um espelho implacável da hipocrisia social diante da natureza do amor. O filme retrata a intensa e proibida relação entre Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal), dois cowboys que se apaixonam nas montanhas de Wyoming, na década de 1960. O que poderia ser uma celebração do amor em sua forma mais pura e avassaladora acaba sendo sufocado por uma teia de normas rígidas, preconceito e medo, revelando a profunda desconexão entre o discurso social sobre o amor e a realidade de sua aceitação.

    Desde o primeiro olhar trocado em Brokeback Mountain, o amor entre Ennis e Jack é visceral, incontestável. Mas, desde o início, é obrigado a existir na clandestinidade, não por vergonha do sentimento em si, mas pelo terror das possíveis represálias sociais. A sociedade de meados do século XX – e, em muitos aspectos, ainda a de hoje — prega um amor idealizado, romântico, heteronormativo e rigidamente confinado a estruturas tradicionais. Celebra-se o amor em músicas, filmes e literatura, desde que ele se encaixe nas caixas previamente estabelecidas. Qualquer desvio desse modelo é rotulado como “anormal”, “pecaminoso” ou “perverso”, tornando-se alvo de estigmatização, violência e ostracismo.

    A hipocrisia social se materializa na forma como Ennis e Jack são forçados a viver vidas duplas. Ennis, sobretudo, é paralisado por um medo visceral de ser descoberto, medo alimentado desde a infância por histórias de brutalidade contra pessoas que ousaram viver seu amor fora das normas. Na tentativa de se adequar, ele casa-se com Alma (Michelle Williams) e constrói uma família, vivendo uma existência marcada pela repressão, pelo silêncio e pela infelicidade latente. Sua rigidez emocional e sua incapacidade de abraçar plenamente o amor por Jack são retratos dolorosos da opressão imposta pelas expectativas sociais. Uma sociedade que, paradoxalmente, enaltece a família e o amor, mas falha miseravelmente em criar espaço para que o amor, em todas as suas formas, floresça sem medo.

    Jack, por outro lado, é mais ousado em sua busca por felicidade. Sonha com uma vida onde ele e Ennis possam viver juntos, livres da vigilância social. Mas seu desejo esbarra constantemente nas barreiras erguidas pelo medo, pela intolerância e pelos traumas de Ennis. A tragédia do filme se instala exatamente aí: na impossibilidade de concretizar um amor que, para Jack, é tão essencial quanto o próprio ar. A sociedade, enquanto exalta o “amor verdadeiro”, condena implacavelmente aquele que não cabe em suas definições estreitas, roubando das pessoas sua plenitude afetiva, emocional e existencial.

    As famílias que ambos constroem, embora aparentemente convencionais, são sustentadas sobre o frágil alicerce da dissimulação. Alma, ao perceber a verdade sobre Ennis e Jack, carrega em silêncio o peso da dor e da traição, mostrando como a opressão de uns reverbera no sofrimento de outros. As mentiras e os segredos corroem os relacionamentos, gerando frustração, ressentimento e solidão. A mesma sociedade que exige conformidade é aquela que, cruelmente, condena seus membros à incompletude e ao sofrimento, tudo em nome de uma moralidade hipócrita e muitas vezes infundada.

    O destino de Jack, sugerido como fruto da violência homofóbica, é o ápice dessa hipocrisia social. A sociedade que condena o amor entre dois homens é a mesma que, através do ódio e da ignorância, produz sua destruição. O Segredo de Brokeback Mountain escancara uma verdade dolorosa: o amor, em sua essência mais pura e desprovida de preconceitos, frequentemente se mostra muito mais evoluído que a sociedade que o abriga. O filme é, ao mesmo tempo, um grito sufocado contra a tirania da conformidade, um lamento pelos amores que nunca puderam ser plenamente vividos, e uma denúncia poderosa da hipocrisia social que prega o amor, mas teme sua real e diversa natureza.

    É, sobretudo, uma obra atemporal que nos lembra que a liberdade de amar é a mais fundamental de todas as liberdades e que sua negação é uma tragédia de proporções humanas e históricas.


  • A trágica sombra do espetáculo e dos jogos de beleza nas redes sociais

    A sociedade contemporânea, imersa no espetáculo das redes sociais e nos incessantes jogos de beleza e felicidade digital, parece ter se esquecido de uma verdade fundamental e historicamente enraizada: a vida possui um lado trágico. Nesse palco virtual de sorrisos incessantes, corpos perfeitos e narrativas impecáveis, a complexidade inerente à existência humana é frequentemente diluída, mascarada por uma busca constante por uma felicidade fabricada. Essa recusa em reconhecer a dimensão sombria da vida não é apenas uma distorção da realidade, mas uma negação de séculos de pensamento filosófico e da própria experiência humana.

    Desde a Grécia Antiga, com suas tragédias que exploravam os dilemas humanos e a inevitabilidade do sofrimento, até os existencialistas do século XX, que enfrentaram a angústia e o absurdo da existência, a filosofia sempre nos lembrou que a vida não é uma linha reta de contentamento. A tristeza, a perda, o fracasso e a dor não são meras interrupções indesejadas, mas elementos intrínsecos à jornada humana. No entanto, o universo das redes sociais, com seus algoritmos que privilegiam o positivo e o visualmente atraente, cria uma bolha onde a vulnerabilidade e a imperfeição são quase banidas, transformando a vida em uma sucessão de momentos editados e filtrados.

    Esse espetáculo da felicidade constante fomenta uma pressão esmagadora para que todos se conformem a um ideal inatingível. A busca por validação externa, expressa em curtidas e comentários, transforma a existência em uma performance, onde a autenticidade é sacrificada em nome da aprovação. A comparação incessante com vidas aparentemente perfeitas gera ansiedade, inveja e uma sensação de inadequação, minando a saúde mental e o bem-estar genuíno. Em vez de nos preparar para os inevitáveis reveses, essa cultura do espetáculo nos torna mais frágeis, menos aptos a lidar com as adversidades quando elas inevitavelmente surgem.

    A história nos ensina que grandes avanços e compreensões profundas muitas vezes emergem da superação de dificuldades. Resiliência, empatia e sabedoria são forjadas nas crises — não na ausência delas. Ao relegar o sofrimento ao ostracismo, a sociedade do espetáculo nos priva da oportunidade de crescer através da dor, de aprender com os erros e de valorizar ainda mais os momentos de alegria. A vida, em sua plenitude, é um tecido complexo no qual felicidade e tristeza se entrelaçam e se complementam. Uma não pode existir de forma significativa sem a outra.

    Perspectivas de historiadores, filósofos, psicólogos e psiquiatras em relação à compreensão da tragédia como parte intrínseca da condição humana não são novas, mas uma reflexão recorrente em diversas áreas do conhecimento:

    Historiadores: A própria história é testemunha da natureza cíclica da tragédia. Como Karl Marx observou, a história pode se repetir, primeiro como tragédia e depois como farsa, indicando que eventos dolorosos são uma constante na trajetória humana. Historiadores como Eric Hobsbawm e Marc Bloch, ao analisarem grandes conflitos e catástrofes, não apenas narram os fatos, mas também revelam a dimensão trágica das escolhas humanas e das forças históricas que moldam o destino de sociedades inteiras.

    Filósofos: Desde Aristóteles, que em sua Poética descreveu a catarse como purificação por meio da piedade e do terror gerados pela tragédia, o sofrimento é tema central na filosofia. Friedrich Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, defendeu que a arte — especialmente a tragédia dionisíaca — é essencial para afirmar a vida em toda a sua dor e beleza, transcendendo o pessimismo e aceitando o “sim” à existência mesmo com suas durezas. Mais tarde, pensadores existencialistas como Albert Camus e Jean-Paul Sartre exploraram a angústia e o absurdo da condição humana, enfatizando que a liberdade individual exige a responsabilidade de criar sentido num mundo essencialmente desprovido dele.

    Psicólogos e psiquiatras: A psicologia e a psiquiatria modernas reconhecem a tristeza e a imperfeição como componentes vitais da saúde mental. Carl Jung, por exemplo, em sua teoria da individuação, destacou que a plenitude da vida requer o equilíbrio entre sofrimento e alegria, e que a negação de qualquer um desses polos leva ao desequilíbrio psíquico. Na psicanálise, Sigmund Freud abordou o “mal-estar na civilização”, argumentando que o sofrimento é inevitável nas relações entre os desejos individuais e as demandas sociais. Psicólogos contemporâneos, como Brené Brown, reforçam a importância da vulnerabilidade e da aceitação da imperfeição como chaves para uma vida autêntica e conectada.

    Em suma, a tentativa de construir uma realidade de felicidade ininterrupta nas redes sociais é uma fuga da complexidade da existência humana. A história, a filosofia e as ciências da mente nos lembram que a vida é um emaranhado de alegrias e tristezas, triunfos e tragédias. Aceitar essa dualidade não é sinal de fraqueza, mas sim de força — permitindo-nos viver com mais profundidade, empatia e resiliência.

    Como podemos, individual e coletivamente, cultivar uma cultura que celebre a autenticidade e a capacidade de enfrentar a tragédia, em vez de mascará-la?


  • A ILUSÃO DO DINHEIRO FÁCIL E A DESINFORMAÇÃO JUVENIL: um alerta necessário

    Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum ouvir jovens afirmando que trabalhar com carteira assinada é “coisa de fracassado” ou que “CLT é perda de tempo”. Paralelamente, cresce o número de adolescentes que desejam ser influenciadores digitais ou jogadores profissionais como forma de alcançar fama e riqueza rapidamente. Esse fenômeno, que poderia parecer apenas uma tendência inofensiva, revela uma crise mais profunda: a desinformação juvenil em relação ao mundo do trabalho e à construção da vida adulta.

    Criada em 1943 por Getúlio Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garantiu direitos fundamentais aos trabalhadores brasileiros — como férias remuneradas, 13º salário, licença-maternidade e aposentadoria. No entanto, essas conquistas históricas têm sido ignoradas por parte da nova geração, que muitas vezes sequer entende o que significa esse regime. O desprezo pela CLT não se dá por experiência própria, mas por discursos distorcidos disseminados nas redes sociais e por influenciadores que pregam o sucesso instantâneo e sem esforço.

    O fascínio pelo “dinheiro fácil” ganhou força com a popularização de plataformas como TikTok, YouTube e Instagram, onde conteúdos de ostentação, rotinas irreais e fórmulas mágicas de enriquecimento atraem milhões de visualizações. Jovens passam horas consumindo esse tipo de material, muitas vezes sem qualquer orientação dos pais ou da escola. Isso tem impactos diretos sobre seus valores, aspirações e até comportamento. Relatos de alunos que sonham ser “ricos do TikTok” ou “jogadores de Free Fire” em vez de buscarem formação profissional são cada vez mais frequentes nas salas de aula.

    É importante destacar que a vida de influenciadores e gamers de sucesso é exceção, não regra. É um mercado competitivo, instável e altamente exigente. Muitos adolescentes que abandonam os estudos para seguir esse caminho acabam frustrados, emocionalmente abalados e sem qualificação para o mercado de trabalho. Enquanto isso, desprezam profissões legítimas que exigem esforço, disciplina e estudo — pilares essenciais para qualquer trajetória sólida.

    Essa realidade é agravada pela ausência de acompanhamento familiar. Muitos pais entregam celulares e tablets a crianças de 4 ou 5 anos, sem monitoramento. Em casos mais extremos, como o de uma menina de 12 anos que começou a furtar dinheiro para “viralizar” no Instagram, vemos o impacto direto da influência digital mal orientada: prejuízo escolar, conflitos familiares e danos emocionais.

    Diante disso, é urgente resgatar o valor do diálogo dentro de casa e nas escolas. Educar não é apenas oferecer estrutura material, mas também preparar os jovens para entender o que é trabalho, responsabilidade e independência financeira. Trabalhar com carteira assinada não é um fracasso — é um passo legítimo e digno na construção de uma carreira. Muitos profissionais bem-sucedidos começaram como estagiários, auxiliares ou vendedores e cresceram por mérito próprio.

    Não se trata de demonizar o universo digital. Ele, de fato, oferece oportunidades e pode ser uma ferramenta poderosa de aprendizado e crescimento. O problema está em consumi-lo sem filtro, sem senso crítico e sem orientação. Quando isso acontece, os riscos se tornam maiores que os benefícios.

    Por isso, pais, educadores e a sociedade como um todo têm o dever de orientar, informar e mostrar aos jovens que a verdadeira liberdade vem do conhecimento, do trabalho honesto e do amadurecimento — não de curtidas passageiras e fama ilusória. O futuro não se constrói com atalhos, mas com escolhas conscientes.


Crônicas













Claudio Wagner













  • Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em Setembro…

    Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em setembro. Esse mês, que me viu chegar ao mundo, tornou-se também uma espécie de espelho da minha própria vida: um tempo de começos e encerramentos, de alegrias e dores, de plenitude e de ausência. Nasci a conversar com a morte e, desde então, essa presença silenciosa caminha comigo. Cada aniversário me lembra, de modo discreto e firme, que logo passarei mais tempo não sendo do que sendo; mais tempo ausente do que presente. Mas essa constatação não é um convite ao desespero. É, antes, um chamado à consciência de que a vida é breve e, por isso, valiosa. Pensar no fim não me paralisa: fortalece em mim a urgência de viver.

    Ao longo da caminhada até aqui, vivi coisas boas e coisas não tão boas. O balanço da vida não é feito apenas de vitórias ou derrotas, mas da mistura de ambas. Fiz amigos e amigas, conheci uma ou duas pessoas que marcaram profundamente minha história, sorri com intensidade, chorei com amargura, senti alegria, medo, frio, calor. Experimentei momentos de plenitude e também períodos de vazio, quando fiquei ressecado pelas dores da vida, sem nada — exatamente nada — sentir. Mas, mesmo nesses intervalos de anestesia, a vida estava lá, latejando, esperando o próximo passo, o próximo suspiro.

    Fiz poesia, escrevi prosas, tive um livro, plantei um filho no mundo e publiquei uma árvore. Essas ações não são apenas símbolos de realização pessoal, mas de um compromisso silencioso com a existência. Conheci ódio, amor, raiva, decepção; perdi muito mais do que ganhei, e cada perda deixou uma marca que me ensinou algo. Fiquei em coma, capotei com um ônibus, sofri com sonambulismo, fiz um rap, aprendi e penso que ensinei algo. Cada experiência, boa ou ruim, moldou a pessoa que sou hoje. Ao olhar para trás, vejo que mesmo o que pareceu destrutivo guardava lições sobre o valor de estar vivo.

    Falta-me, ao certo, inimigos, mas devo tê-los; pelo menos espero que sim. Essa frase, meio irônica, reflete uma vida mais voltada ao encontro do que ao confronto. Atravessei a nado do cais da Tavares de Lira para a Redinha, pulei da Ponte Velha de Igapó, andei de bicicleta até desmaiar. São lembranças de desafios, de experimentos com os limites do corpo e do medo. Esses momentos não são simples aventuras: são marcas do desejo de sentir, de tocar o extremo da vida, de provar que estou aqui, inteiro, respirando.

    Tudo isso é viver. E, como todo mundo, eu vivi. Vivi… vivi… e a morte segue comigo. Mas a morte, aqui, não é personagem de um drama sombrio; é antes uma mestra silenciosa. Ao me lembrar que sou finito, ela me ensina o valor do instante. Ao recordar que tudo acaba, ela me mostra o que merece começar. Ao falar dela, falo da vida. Ao refletir sobre o fim, descubro o sentido do meio.

    Não há nada de mórbido nesse diálogo com a morte. Há lucidez. Há força. Há um reconhecimento de que cada segundo importa. Pensar no fim não diminui a importância do caminho; pelo contrário, engrandece-o. Sem a morte, a vida perderia urgência, perderia sabor. Se eu não soubesse que cada aniversário é também um lembrete da finitude, talvez desperdiçasse mais dias, mais encontros, mais gestos. Mas, consciente de que o tempo é curto, busco fazer cada instante contar.

    Essa é a lição que carrego e que tento transmitir: falar da morte é, na verdade, uma forma de falar da vida. É reconhecer que ela não é infinita, e que justamente por isso precisa ser intensa, honesta, experimentada. É entender que cada dor, cada alegria, cada vazio e cada conquista são parte de um mosaico irrepetível. É aceitar que tudo o que é maravilhoso e ruim nasce e morre — assim como nós.

    Hoje, olhando para trás, percebo que cada salto, cada travessia, cada poesia, cada lágrima e cada sorriso foram, no fundo, declarações de vida. E é essa consciência que me fortalece: não temo a morte porque aprendi, com ela, a valorizar o que sou agora. A morte é companheira, mas a vida é o caminho. Pensar no fim não me impede de caminhar; ao contrário, me orienta. É o fim que dá sentido ao meio, é a certeza do último ato que dá força aos capítulos.

    Tudo que é maravilhoso e ruim nasce em setembro, inclusive eu. Nasci a conversar com a morte, mas vivo a aprender com ela a importância de estar vivo. Cada aniversário é um lembrete de que o tempo não volta, e cada lembrança é uma prova de que estive aqui. Vivi. Vivi. E sigo vivendo.


  • O Som de um Trovão, de Ray Bradbury, o efeito borboleta e a teoria do caos

    Ray Bradbury, em seu conto “O Som de um Trovão”, publicado em 1952, constrói uma narrativa de ficção científica que permanece atual e provocativa. O enredo apresenta uma empresa que oferece viagens no tempo a caçadores de aventuras. O personagem central, Eckels, contrata esse serviço para viver a experiência de caçar um dinossauro no período cretáceo. A partir daí, Bradbury desenvolve uma reflexão literária que transcende a fantasia, tocando em temas filosóficos, científicos e éticos.

    A viagem no tempo é regida por uma regra fundamental: não se pode alterar nada no passado, pois qualquer modificação, mesmo mínima, pode repercutir no futuro. A advertência, entretanto, é violada. Eckels, tomado pelo medo, sai da trilha delimitada e, em um gesto aparentemente insignificante, pisa em uma borboleta pré-histórica. Ao retornar ao presente, o grupo percebe que o mundo está diferente: a língua, a política e a organização social sofreram alterações.

    O “som do trovão”, título e metáfora, não é apenas o disparo que mata o dinossauro ou o estampido final da narrativa, mas também a reverberação de consequências que um ato pequeno pode produzir. Aqui, Bradbury antecipa a metáfora científica conhecida como efeito borboleta, formulada décadas depois por Edward Lorenz, no âmbito da meteorologia e da teoria do caos.

    O efeito borboleta sustenta que uma mínima variação nas condições iniciais de um sistema pode desencadear resultados completamente imprevisíveis. No conto, a morte da borboleta no passado desencadeia transformações drásticas no futuro. Na vida real, o conceito se conecta à teoria do caos, que mostra como sistemas complexos, como o clima, a economia ou até as relações humanas, podem ser sensíveis a pequenas alterações.

    A genialidade de Bradbury está em transformar uma narrativa de ficção em reflexão existencial. Sua história alerta que os gestos humanos, por menores que pareçam, têm potência de modificar destinos. No cotidiano, isso significa que escolhas banais — uma palavra dita ou calada, uma ação praticada ou omitida — podem gerar efeitos de longo alcance, influenciando vidas de formas invisíveis e imprevisíveis.

    O trovão, nesse contexto, é a metáfora do impacto. Assim como um raio corta o céu e seu som se espalha à distância, as ações humanas repercutem em ondas. O conto mostra que o tempo não é apenas uma linha rígida, mas um campo de possibilidades delicadas, onde cada passo importa. A borboleta pisada é um aviso literário de que não existe gesto inócuo.

    No plano social, essa mensagem ganha ainda mais força. Pequenos atos de intolerância podem gerar correntes de ódio. Pequenas atitudes de solidariedade podem desencadear redes de empatia. Assim como no conto o presente foi alterado pela morte de um ser minúsculo no passado remoto, também em nossa vida social e política pequenas decisões acumuladas moldam o destino coletivo.

    O cotidiano, muitas vezes, nos faz acreditar que nossas ações são irrelevantes. Contudo, a teoria do caos e a metáfora do conto de Bradbury desconstroem essa ilusão. Somos parte de um sistema interconectado, no qual uma escolha individual pode ter ressonâncias globais. O “som do trovão” ecoa como advertência ética: pensar antes de agir, medir as consequências e compreender que o tempo é tecido por nossas escolhas.

    Ao final, O Som de um Trovão não é apenas um conto de ficção científica. É uma parábola moderna sobre responsabilidade, destino e interdependência. Bradbury convida o leitor a reconhecer que viver é participar de um jogo caótico, onde cada gesto reverbera como trovão e cada borboleta pode transformar a história.


  • As terras da Vila de Índios de Extremoz sob duas facções: disputas políticas nos processos de territorialização indígena no Rio Grande do Norte (1760-1858)

    A pesquisa do historiador e professor Pedro Pinheiro é sobre nós, sobre descobrir o lugar a partir de novos olhares e compreender a quem, de fato, pertenceu o território. Vou destacar os pontos que considero cruciais da leitura, sem a pretensão de esgotar a tese, deixando a vocês a incumbência de conhecê-la integralmente.

    A tese de Pedro Pinheiro de Araújo Júnior, intitulada As terras da Vila de Índios de Extremoz sob duas facções: disputas políticas nos processos de territorialização indígena no Rio Grande do Norte (1760-1858), oferece uma contribuição fundamental para a historiografia potiguar e brasileira. O trabalho evidencia como a territorialização indígena foi decisiva na configuração social, política e espacial da Vila de Extremoz e como, ao longo do século XIX, ocorreu um processo sistemático de invisibilização desses povos.

    O autor parte da noção de território social, inspirada em Paul Little, para demonstrar que o espaço de Extremoz foi construído por diferentes grupos indígenas – Potiguara, Panati, Caboré e Janduí – que, após a “Guerra dos Bárbaros” (1682-1713), foram reunidos e consolidaram uma nova territorialidade coletiva. Esse território, mais que um espaço físico, representava identidade, memória e resistência.

    Um dos pontos centrais da tese é a demonstração de que os indígenas não foram sujeitos passivos, mas protagonistas. Eles recorreram à justiça, ocuparam cargos municipais e militares, reivindicaram sesmarias e atuaram ativamente em processos políticos, como na Revolução de 1817 e na Confederação do Equador. Personagens como Hipólito da Cunha e Ignácio Duarte surgem como exemplos de lideranças que articularam estratégias de defesa coletiva e de participação no poder local.

    No entanto, o século XIX marcou o avanço de mecanismos de desterritorialização. Leis como o Regulamento da Civilização dos Índios (1845) e a Lei de Terras (1850), somadas a decisões imperiais, legitimaram o esbulho das áreas indígenas sob o argumento de que esses povos haviam “desaparecido” ou se “misturado à população civilizada”. Esse discurso de “extinção” foi amplamente difundido por presidentes de província, como Morais Sarmento, no Rio Grande do Norte, em 1847.

    A tese revela, contudo, que esse “apagamento” foi mais político e discursivo do que real. Nos registros de batismos, casamentos, vereações e processos judiciais, a presença indígena permanece constante. Mesmo diante da perseguição, muitos passaram a se identificar como “caboclos” como estratégia de sobrevivência social, sem que isso significasse o abandono de sua ancestralidade.

    Outro aspecto relevante é a análise das disputas por terras. Documentos de sesmarias e processos judiciais comprovam que as terras de Extremoz pertenciam originalmente ao patrimônio indígena. Diversos colonos e fazendeiros tentaram apropriar-se delas, mas frequentemente encontraram resistência legal e comunitária organizada pelos próprios índios.

    Pedro Pinheiro demonstra, assim, que a narrativa de que os indígenas “não precisavam de terras” ou eram “preguiçosos” foi uma construção racista usada para justificar sua exclusão. Na prática, eram eles os legítimos donos do território, sustentando a vida comunitária, cultivando as áreas e defendendo seu espaço de geração em geração.

    A história de Extremoz, conforme revelada na tese, é exemplar de um fenômeno mais amplo no Brasil: a tentativa de invisibilizar os povos originários para consolidar um modelo agrário concentrador. O autor conclui que, longe de desaparecer, os indígenas se reinventaram, preservaram sua territorialidade e continuam sendo os verdadeiros donos das terras historicamente usurpadas.

    Essa tese não apenas reconta a história de Extremoz, mas desmistifica séculos de silêncio. Mostra que a terra, tão disputada, guarda memória, e nela está inscrita a marca dos povos originários. Trata-se de uma obra essencial para compreender como o Rio Grande do Norte – e o Brasil – foram moldados por processos de resistência indígena que ainda ecoam no presente.


  • Medo e Delírio e a Emoção de Uma Leitura Atemporal

    O livro Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream), de Hunter S. Thompson, é uma obra-prima que atravessa gerações. Mais do que narrativa, é uma experiência imersiva no chamado “jornalismo gonzo”, estilo criado por Thompson que mistura reportagem com subjetividade, realidade com delírio.

    A trama acompanha Raoul Duke (alter ego do autor) e seu advogado, Dr. Gonzo, em uma viagem a Las Vegas: primeiro para cobrir uma corrida de motos, depois uma conferência sobre narcóticos. O que se desenrola, porém, vai muito além da pauta jornalística: uma espiral de alucinações, paranoia e uma busca desesperada pelo “Sonho Americano”. A prosa de Thompson é uma tempestade de palavras, um caos controlado que espelha tanto a mente enlouquecida do protagonista quanto a própria desordem de seu tempo.

    Ler este livro, escrito um ano antes do meu nascimento, foi como abrir uma cápsula do tempo. Um artefato que carrega não apenas os excessos de uma época, mas sobretudo a desilusão de uma geração. Thompson transforma experiências pessoais em reflexão universal, expondo o fracasso dos ideais dos anos 60. O resultado é uma narrativa atemporal: não apenas sobre drogas ou Las Vegas, mas sobre a perda de um horizonte, sobre a melancolia escondida sob o riso e o caos.

    A cada página, senti uma ponte com o passado. O desespero, a ironia e a intensidade do texto ressoaram de forma surpreendentemente atual, como se as angústias de então ainda ecoassem em nosso presente. Esse diálogo entre épocas é o que torna a leitura tão poderosa: a constatação de que os sonhos e desilusões de uma geração podem ser compreendidos, revisitados e sentidos por outra, mesmo décadas depois.

    Medo e Delírio é um livro que desafia convenções, exige entrega e mente aberta para se deixar conduzir por sua loucura. Minha leitura oscilou entre gargalhadas e reflexões profundas, entre o absurdo e a revelação. É um clássico que permanece vivo, um retrato cru e honesto das frustrações de uma era e, paradoxalmente, das nossas também. O fato de ter sido escrito antes do meu nascimento acrescenta ainda mais força à experiência: como se a obra tivesse me aguardado, pronta para me contar sua história e me incluir em sua jornada atemporal.


  • Entre o ronco da alma e a Poesia do asfalto

    Gostar de motos é mais do que pilotar. É sentir o corpo fundido à máquina, o vento fatiando a pele, o tempo escorrendo pelas mãos. O asfalto não é apenas estrada: é livro aberto, onde cada quilômetro escrito com pneus e poeira guarda uma metáfora. A moto, esse bicho de metal e liberdade, não é veículo — é rito, é confissão, é oração em alta rotação. Quem vive sobre duas rodas compreende o silêncio das madrugadas, a eloquência do vento, a sabedoria de se perder para encontrar-se.

    E se a moto é corpo em movimento, a poesia é alma em combustão. Quando os versos se fazem estrada, cada palavra é uma curva, cada estrofe é um horizonte. É possível ser centauro urbano, cruzando cidades e ideias com o coração ligado na ignição e a mente rascunhando metáforas na paisagem. O capacete protege o crânio, mas não barra os sonhos: por dentro dele, borbulham lembranças, rimas, promessas que nunca couberam no papel. A poesia acompanha o motociclista como sombra, como ponte, como companheira invisível de todas as rotas.

    Viver, nesse contexto, é uma arte em três atos: moto, poesia e liberdade. A vida se revela não em destinos, mas em percursos. Há quem conte os dias; nós contamos os quilômetros e os versos. Quando falta combustível, sobra inspiração. Quando o mundo pesa, a aceleração devolve o fôlego. No trajeto, aprendemos a cair — e, principalmente, a levantar. A vida sobre rodas é feita de arranhões, consertos, mapas improvisados. A poesia, por sua vez, é o que costura os pedaços, dá sentido às pausas e transforma cada buraco em metáfora.

    Há dias em que a estrada é flor. Noutros, é pedra. Mas há beleza nos dois. O prazer de pilotar é também um exercício de escuta: o ronco do motor tem ritmo, tem cadência, quase sempre canta o que a alma quer dizer. É nesse som, meio bruto, meio místico, que mora a voz do coração inquieto. É nesse silêncio que mora a palavra que ainda não nasceu. Gostar de motos é, de certa forma, gostar da vida em sua versão mais crua e ao mesmo tempo mais intensa. Gostar de poesia é não se conformar com a realidade, mas moldá-la com beleza e crítica.

    A vida em prosa é muito reta; por isso prefiro vivê-la em curvas. No tanque da moto levo água, mas no peito carrego sonhos. Na mochila vão cadernos, rabiscos, letras e paisagens. Em cada parada, um poema. Em cada farol, um instante de contemplação. É nos detalhes do caminho — no cachorro que cruza a rua, no pôr do sol refletido no espelho, na árvore que insiste em crescer ao lado do ferro velho — que a poesia acontece. Não precisa de palco. Basta um banco duro, um motor aquecido e olhos abertos.

    A moto ensina sobre impermanência. A poesia, sobre eternidade. E a vida? A vida é a estrada que une as duas: rápida demais para ser ignorada, intensa demais para ser vivida com pressa. Entre o ronco da alma e o verso do asfalto, há um poeta de jaqueta, um viajante de olhos acesos, um ser que não teme as tempestades — porque aprendeu que até a chuva, às vezes, rima com liberdade.


  • Lê, por quê?

    A leitura, em sua essência, é um portal para o mundo — mais que entretenimento, é uma ferramenta vital que transforma, conecta e liberta. Ela ultrapassa o simples lazer e se estabelece como um pilar fundamental do desenvolvimento humano, individual e coletivo. Ao mergulhar em narrativas e textos, o leitor não apenas busca prazer, mas também se fortalece com conhecimento, fazendo da leitura um ato de empoderamento e autodescoberta.

    Ler não é uma obrigação — é, sobretudo, um convite ao encantamento. No silêncio das páginas, o leitor encontra abrigo e embarca em jornadas sem sair do lugar. Vive emoções de personagens reais ou imaginários e se permite sonhar. Essa dimensão lúdica é a porta de entrada para o hábito leitor: desperta a curiosidade, alimenta a imaginação e convida à exploração de universos diversos — dos épicos aos íntimos, da ficção ao real. Perder-se em uma história é, por si só, um gesto de liberdade e uma celebração da criatividade.

    Mas a leitura vai além do encantamento: é também a chave para o saber. Cada livro guarda um tesouro — seja ele científico, histórico, filosófico ou artístico. Ao dedicar-se à leitura, o indivíduo constrói uma base sólida de informações, aprimorando sua visão crítica e sua capacidade de interpretar o mundo. Textos jornalísticos, ensaísticos ou acadêmicos ajudam a decifrar as complexidades da sociedade, enquanto a literatura aprofunda nossa empatia e nos conecta a diferentes culturas, tempos e sentimentos. O conhecimento adquirido pelos livros fundamenta o pensamento reflexivo, fomenta a inovação e impulsiona o progresso coletivo.

    O livro é mais do que um objeto: é um santuário de ideias, um espaço sagrado onde os grandes feitos e dilemas da humanidade se preservam. Ali, pensamentos ganham forma e se perpetuam, atravessando gerações. Um livro pode ser mentor, confidente ou farol — oferecendo direção em momentos de incerteza. Ele nos desafia a pensar, nos provoca a crescer e nos insere numa longa e rica conversa com o tempo. Ao virar uma página, não apenas lemos: participamos da construção do nosso entendimento do mundo e de nós mesmos.


  • Eu sei quem você é

    Pessoas entram e saem das nossas vidas o tempo todo — amores, amizades, colegas de trabalho. Algumas deixam marcas boas, outras apenas um vazio. E embora essa dança de chegadas e partidas pareça natural, há algo que sempre me inquieta: aquelas que, ao partir, dizem “agora sei quem você é”… e vão embora sem me contar quem sou.

    As despedidas carregam, por si só, um peso singular. Mas essa frase, dita tantas vezes por pessoas que amei ou confiei, transforma o adeus em algo mais doloroso: um julgamento silencioso. Não é a ausência física que mais machuca — é o silêncio sobre o que foi supostamente descoberto.

    Como podem ir embora levando uma verdade que dizem ter percebido em mim, enquanto eu sigo tentando entender a mim mesmo? Eu, protagonista da minha própria história, ainda caminho às cegas, tateando os contornos do meu ser. E eles, que afirmam ter me enxergado com clareza, somem sem deixar rastro — como quem leva um espelho e me priva da chance de me ver.

    A crueldade está justamente nisso: não na descoberta, mas no segredo. Se sabiam quem eu sou, por que não disseram? Por que escolheram partir com essa certeza sem me dar a chance de dialogar com ela? É um abandono duplo — da presença e da possibilidade de autoconhecimento.

    Talvez o erro esteja em esperar que o outro nos defina. A identidade é fluida, mutável, um rio em constante movimento. Ainda assim, quando tantos repetem a mesma sentença — “agora sei quem você é” —, não tem como não se perguntar: será que existe em mim algo evidente para os outros, mas invisível aos meus próprios olhos?

    E, se sim, por que essa verdade me é negada?

    A dor da ausência é real. Mas a dor do não saber — essa sim, é a mais profunda. Essa frase, solta no ar como um enigma não resolvido, se torna um eco que me persegue. Uma promessa de revelação jamais cumprida.

    Resta-me a reflexão solitária. Sigo tentando decifrar os rastros deixados nas entrelinhas de cada adeus. Procuro pistas nas memórias, nos gestos, nas palavras ditas e nas que foram silenciadas. Sigo em busca de mim — ainda que os que foram embora tenham levado consigo a bússola.

    Porque, no fim, talvez minha essência não precise ser confirmada por ninguém. Talvez, um dia, ela simplesmente floresça. E que eu, enfim, diga a mim mesmo: “Agora sei quem eu sou.”


  • O Amor Enjaulado: A Hipocrisia Social em “O Segredo de Brokeback Mountain”

    O Segredo de Brokeback Mountain (2005), dirigido por Ang Lee, não é apenas um romance trágico. É um espelho implacável da hipocrisia social diante da natureza do amor. O filme retrata a intensa e proibida relação entre Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal), dois cowboys que se apaixonam nas montanhas de Wyoming, na década de 1960. O que poderia ser uma celebração do amor em sua forma mais pura e avassaladora acaba sendo sufocado por uma teia de normas rígidas, preconceito e medo, revelando a profunda desconexão entre o discurso social sobre o amor e a realidade de sua aceitação.

    Desde o primeiro olhar trocado em Brokeback Mountain, o amor entre Ennis e Jack é visceral, incontestável. Mas, desde o início, é obrigado a existir na clandestinidade, não por vergonha do sentimento em si, mas pelo terror das possíveis represálias sociais. A sociedade de meados do século XX – e, em muitos aspectos, ainda a de hoje — prega um amor idealizado, romântico, heteronormativo e rigidamente confinado a estruturas tradicionais. Celebra-se o amor em músicas, filmes e literatura, desde que ele se encaixe nas caixas previamente estabelecidas. Qualquer desvio desse modelo é rotulado como “anormal”, “pecaminoso” ou “perverso”, tornando-se alvo de estigmatização, violência e ostracismo.

    A hipocrisia social se materializa na forma como Ennis e Jack são forçados a viver vidas duplas. Ennis, sobretudo, é paralisado por um medo visceral de ser descoberto, medo alimentado desde a infância por histórias de brutalidade contra pessoas que ousaram viver seu amor fora das normas. Na tentativa de se adequar, ele casa-se com Alma (Michelle Williams) e constrói uma família, vivendo uma existência marcada pela repressão, pelo silêncio e pela infelicidade latente. Sua rigidez emocional e sua incapacidade de abraçar plenamente o amor por Jack são retratos dolorosos da opressão imposta pelas expectativas sociais. Uma sociedade que, paradoxalmente, enaltece a família e o amor, mas falha miseravelmente em criar espaço para que o amor, em todas as suas formas, floresça sem medo.

    Jack, por outro lado, é mais ousado em sua busca por felicidade. Sonha com uma vida onde ele e Ennis possam viver juntos, livres da vigilância social. Mas seu desejo esbarra constantemente nas barreiras erguidas pelo medo, pela intolerância e pelos traumas de Ennis. A tragédia do filme se instala exatamente aí: na impossibilidade de concretizar um amor que, para Jack, é tão essencial quanto o próprio ar. A sociedade, enquanto exalta o “amor verdadeiro”, condena implacavelmente aquele que não cabe em suas definições estreitas, roubando das pessoas sua plenitude afetiva, emocional e existencial.

    As famílias que ambos constroem, embora aparentemente convencionais, são sustentadas sobre o frágil alicerce da dissimulação. Alma, ao perceber a verdade sobre Ennis e Jack, carrega em silêncio o peso da dor e da traição, mostrando como a opressão de uns reverbera no sofrimento de outros. As mentiras e os segredos corroem os relacionamentos, gerando frustração, ressentimento e solidão. A mesma sociedade que exige conformidade é aquela que, cruelmente, condena seus membros à incompletude e ao sofrimento, tudo em nome de uma moralidade hipócrita e muitas vezes infundada.

    O destino de Jack, sugerido como fruto da violência homofóbica, é o ápice dessa hipocrisia social. A sociedade que condena o amor entre dois homens é a mesma que, através do ódio e da ignorância, produz sua destruição. O Segredo de Brokeback Mountain escancara uma verdade dolorosa: o amor, em sua essência mais pura e desprovida de preconceitos, frequentemente se mostra muito mais evoluído que a sociedade que o abriga. O filme é, ao mesmo tempo, um grito sufocado contra a tirania da conformidade, um lamento pelos amores que nunca puderam ser plenamente vividos, e uma denúncia poderosa da hipocrisia social que prega o amor, mas teme sua real e diversa natureza.

    É, sobretudo, uma obra atemporal que nos lembra que a liberdade de amar é a mais fundamental de todas as liberdades e que sua negação é uma tragédia de proporções humanas e históricas.


  • A trágica sombra do espetáculo e dos jogos de beleza nas redes sociais

    A sociedade contemporânea, imersa no espetáculo das redes sociais e nos incessantes jogos de beleza e felicidade digital, parece ter se esquecido de uma verdade fundamental e historicamente enraizada: a vida possui um lado trágico. Nesse palco virtual de sorrisos incessantes, corpos perfeitos e narrativas impecáveis, a complexidade inerente à existência humana é frequentemente diluída, mascarada por uma busca constante por uma felicidade fabricada. Essa recusa em reconhecer a dimensão sombria da vida não é apenas uma distorção da realidade, mas uma negação de séculos de pensamento filosófico e da própria experiência humana.

    Desde a Grécia Antiga, com suas tragédias que exploravam os dilemas humanos e a inevitabilidade do sofrimento, até os existencialistas do século XX, que enfrentaram a angústia e o absurdo da existência, a filosofia sempre nos lembrou que a vida não é uma linha reta de contentamento. A tristeza, a perda, o fracasso e a dor não são meras interrupções indesejadas, mas elementos intrínsecos à jornada humana. No entanto, o universo das redes sociais, com seus algoritmos que privilegiam o positivo e o visualmente atraente, cria uma bolha onde a vulnerabilidade e a imperfeição são quase banidas, transformando a vida em uma sucessão de momentos editados e filtrados.

    Esse espetáculo da felicidade constante fomenta uma pressão esmagadora para que todos se conformem a um ideal inatingível. A busca por validação externa, expressa em curtidas e comentários, transforma a existência em uma performance, onde a autenticidade é sacrificada em nome da aprovação. A comparação incessante com vidas aparentemente perfeitas gera ansiedade, inveja e uma sensação de inadequação, minando a saúde mental e o bem-estar genuíno. Em vez de nos preparar para os inevitáveis reveses, essa cultura do espetáculo nos torna mais frágeis, menos aptos a lidar com as adversidades quando elas inevitavelmente surgem.

    A história nos ensina que grandes avanços e compreensões profundas muitas vezes emergem da superação de dificuldades. Resiliência, empatia e sabedoria são forjadas nas crises — não na ausência delas. Ao relegar o sofrimento ao ostracismo, a sociedade do espetáculo nos priva da oportunidade de crescer através da dor, de aprender com os erros e de valorizar ainda mais os momentos de alegria. A vida, em sua plenitude, é um tecido complexo no qual felicidade e tristeza se entrelaçam e se complementam. Uma não pode existir de forma significativa sem a outra.

    Perspectivas de historiadores, filósofos, psicólogos e psiquiatras em relação à compreensão da tragédia como parte intrínseca da condição humana não são novas, mas uma reflexão recorrente em diversas áreas do conhecimento:

    Historiadores: A própria história é testemunha da natureza cíclica da tragédia. Como Karl Marx observou, a história pode se repetir, primeiro como tragédia e depois como farsa, indicando que eventos dolorosos são uma constante na trajetória humana. Historiadores como Eric Hobsbawm e Marc Bloch, ao analisarem grandes conflitos e catástrofes, não apenas narram os fatos, mas também revelam a dimensão trágica das escolhas humanas e das forças históricas que moldam o destino de sociedades inteiras.

    Filósofos: Desde Aristóteles, que em sua Poética descreveu a catarse como purificação por meio da piedade e do terror gerados pela tragédia, o sofrimento é tema central na filosofia. Friedrich Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, defendeu que a arte — especialmente a tragédia dionisíaca — é essencial para afirmar a vida em toda a sua dor e beleza, transcendendo o pessimismo e aceitando o “sim” à existência mesmo com suas durezas. Mais tarde, pensadores existencialistas como Albert Camus e Jean-Paul Sartre exploraram a angústia e o absurdo da condição humana, enfatizando que a liberdade individual exige a responsabilidade de criar sentido num mundo essencialmente desprovido dele.

    Psicólogos e psiquiatras: A psicologia e a psiquiatria modernas reconhecem a tristeza e a imperfeição como componentes vitais da saúde mental. Carl Jung, por exemplo, em sua teoria da individuação, destacou que a plenitude da vida requer o equilíbrio entre sofrimento e alegria, e que a negação de qualquer um desses polos leva ao desequilíbrio psíquico. Na psicanálise, Sigmund Freud abordou o “mal-estar na civilização”, argumentando que o sofrimento é inevitável nas relações entre os desejos individuais e as demandas sociais. Psicólogos contemporâneos, como Brené Brown, reforçam a importância da vulnerabilidade e da aceitação da imperfeição como chaves para uma vida autêntica e conectada.

    Em suma, a tentativa de construir uma realidade de felicidade ininterrupta nas redes sociais é uma fuga da complexidade da existência humana. A história, a filosofia e as ciências da mente nos lembram que a vida é um emaranhado de alegrias e tristezas, triunfos e tragédias. Aceitar essa dualidade não é sinal de fraqueza, mas sim de força — permitindo-nos viver com mais profundidade, empatia e resiliência.

    Como podemos, individual e coletivamente, cultivar uma cultura que celebre a autenticidade e a capacidade de enfrentar a tragédia, em vez de mascará-la?


  • A ILUSÃO DO DINHEIRO FÁCIL E A DESINFORMAÇÃO JUVENIL: um alerta necessário

    Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum ouvir jovens afirmando que trabalhar com carteira assinada é “coisa de fracassado” ou que “CLT é perda de tempo”. Paralelamente, cresce o número de adolescentes que desejam ser influenciadores digitais ou jogadores profissionais como forma de alcançar fama e riqueza rapidamente. Esse fenômeno, que poderia parecer apenas uma tendência inofensiva, revela uma crise mais profunda: a desinformação juvenil em relação ao mundo do trabalho e à construção da vida adulta.

    Criada em 1943 por Getúlio Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) garantiu direitos fundamentais aos trabalhadores brasileiros — como férias remuneradas, 13º salário, licença-maternidade e aposentadoria. No entanto, essas conquistas históricas têm sido ignoradas por parte da nova geração, que muitas vezes sequer entende o que significa esse regime. O desprezo pela CLT não se dá por experiência própria, mas por discursos distorcidos disseminados nas redes sociais e por influenciadores que pregam o sucesso instantâneo e sem esforço.

    O fascínio pelo “dinheiro fácil” ganhou força com a popularização de plataformas como TikTok, YouTube e Instagram, onde conteúdos de ostentação, rotinas irreais e fórmulas mágicas de enriquecimento atraem milhões de visualizações. Jovens passam horas consumindo esse tipo de material, muitas vezes sem qualquer orientação dos pais ou da escola. Isso tem impactos diretos sobre seus valores, aspirações e até comportamento. Relatos de alunos que sonham ser “ricos do TikTok” ou “jogadores de Free Fire” em vez de buscarem formação profissional são cada vez mais frequentes nas salas de aula.

    É importante destacar que a vida de influenciadores e gamers de sucesso é exceção, não regra. É um mercado competitivo, instável e altamente exigente. Muitos adolescentes que abandonam os estudos para seguir esse caminho acabam frustrados, emocionalmente abalados e sem qualificação para o mercado de trabalho. Enquanto isso, desprezam profissões legítimas que exigem esforço, disciplina e estudo — pilares essenciais para qualquer trajetória sólida.

    Essa realidade é agravada pela ausência de acompanhamento familiar. Muitos pais entregam celulares e tablets a crianças de 4 ou 5 anos, sem monitoramento. Em casos mais extremos, como o de uma menina de 12 anos que começou a furtar dinheiro para “viralizar” no Instagram, vemos o impacto direto da influência digital mal orientada: prejuízo escolar, conflitos familiares e danos emocionais.

    Diante disso, é urgente resgatar o valor do diálogo dentro de casa e nas escolas. Educar não é apenas oferecer estrutura material, mas também preparar os jovens para entender o que é trabalho, responsabilidade e independência financeira. Trabalhar com carteira assinada não é um fracasso — é um passo legítimo e digno na construção de uma carreira. Muitos profissionais bem-sucedidos começaram como estagiários, auxiliares ou vendedores e cresceram por mérito próprio.

    Não se trata de demonizar o universo digital. Ele, de fato, oferece oportunidades e pode ser uma ferramenta poderosa de aprendizado e crescimento. O problema está em consumi-lo sem filtro, sem senso crítico e sem orientação. Quando isso acontece, os riscos se tornam maiores que os benefícios.

    Por isso, pais, educadores e a sociedade como um todo têm o dever de orientar, informar e mostrar aos jovens que a verdadeira liberdade vem do conhecimento, do trabalho honesto e do amadurecimento — não de curtidas passageiras e fama ilusória. O futuro não se constrói com atalhos, mas com escolhas conscientes.


Crônicas