Quincas Berro D’Água, de Sérgio Machado (Brasil, 2010)







Diretor: Sérgio Machado
Com: Paulo José (Quincas Berro D’Água), Marieta Severo (Manuela), Mariana Ximenes (Vanda), Vladimir Brichta (Leonardo), Flávio Bauraqui (Pastinha), Irandhir Santos (Cabo Martim), Luís Miranda (Pé de Vento), Frank Menezes (Curió), Othon Bastos (Alonso), Walderez de Barros (Tia Marisa), Mílton Gonçalves (Delegado Morais), Carla Ribas (Otacília), Germano Haiuti (Tio Eduardo), Eurico Brás (Agenor), Angelo Flávio (Zico) e Maria Menezes (Lolita)

Por um desses acasos instrutivos, assisti Quincas Berro D’água no mesmo fim de semana em que li O Falecido Mattia Pascal, do siciliano Pirandello. Tanto o Quincas de Amado quanto Mattia afirmam no princípio de suas narrativas em primeira pessoa, repletas de monólogos, que morreram duas vezes. Mas o que une seus temas, contudo, é que tiveram duas vidas.

Quincas, servidor público aborrecido e oprimido por seu ambiente, larga família e círculo social, dedicando-se à boemia soteropolitana; Mattia, tido como morto, segue nova vida por diversos destinos da Europa vitoriana. Ambos percorrerão um longo caminho pra alcançarem lugares distintos, cada qual reconstruindo o significado das relações humanas e da própria existência.

Li o livro de Jorge Amado em que se baseia o roteiro do filme – A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de 1958 – há tempo suficiente pra que muita cosia me escape. Mas o principal pôde ser resgatado pelo filme de Sérgio Machado (Cidade Baixa e Onde a Terra Acaba). Lá estão os numerosos personagens de Jorge Amado, ricamente compostos, ainda que superficiais e caricatos; a linguagem debochada e sem pruridos; a incrível sensibilidade para o hilário, cercado pela miséria e amargura. Nesse último ponto, o filme possui grande mérito pela fotografia sombria e bela que contrasta com a constante comicidade do enredo, preservando – sem perder o riso – a gravidade que contém o texto e seu significado último.

Apesar de num primeiro plano ser uma grande festa, Quincas aborda com vigor o tema mais produtivo da grande literatura: a existência e suas realidades. Nosso protagonista abandona a segura e cômoda vida de funcionário por um cotidiano desregrado e temeroso. Nesta escolha, faz sua crítica ao mundo da filha, que confrontada pela realidade em que vivia o pai terá de lidar com sua herança.

O filme possui uma série de atuações notáveis, destacadamente Paulo José (um morto roubando a cena) e Mariana Ximenes no papel de Vanda, a filha. Muito se tem dito sobre os inegáveis talentos de Paulo José, esse formidável ator. Por isso mesmo quero dar atenção especial a Ximenes. Desde O Invasor, a jovem atriz chama atenção pela qualidade de suas atuações. Consegue ser intensa e eloquente sem os maneirismos recorrentes do cinema nacional, com uma forma de interpretar própria que só vemos nos grandes talentos.

Quincas, o filme, faz justiça a Quincas, o livro. E mais: lhe presta um favor. Sem atender à sedução de rebuscar ou encher de pompa e “eruditismo” o texto cru – e por vezes mesmo limitado – de Jorge Amado, o filme traz o autor em sua melhor forma, nos limites de seu alcance e com dignidade. Ano após ano, vemos péssimas adaptações virem a público, acumulando um grande lixo cinematográfico.

Felizmente, temos neste filme uma notável exceção. Quincas e Mattia partem de um mesmo sentimento de clausura para chegar a pontos distintos em sua trajetória. A aceitação debochada do próprio fim não deixa de ser um desesperado cinismo de Quincas, e o filme é feliz em deixar esta noção transparecer. Por isso e muito mais, Quincas não só vale ser visto como é provavelmente a melhor adaptação do cinema nacional desde Vidas Secas, lado a lado com Lavoura Arcaica. Isso vai soar um sacrilégio aos cinéfilos, mas como adaptação esse filme entrega tudo o que a obra de Jorge Amado oferece.


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Diretor: Sérgio Machado
Com: Paulo José (Quincas Berro D’Água), Marieta Severo (Manuela), Mariana Ximenes (Vanda), Vladimir Brichta (Leonardo), Flávio Bauraqui (Pastinha), Irandhir Santos (Cabo Martim), Luís Miranda (Pé de Vento), Frank Menezes (Curió), Othon Bastos (Alonso), Walderez de Barros (Tia Marisa), Mílton Gonçalves (Delegado Morais), Carla Ribas (Otacília), Germano Haiuti (Tio Eduardo), Eurico Brás (Agenor), Angelo Flávio (Zico) e Maria Menezes (Lolita)

Por um desses acasos instrutivos, assisti Quincas Berro D’água no mesmo fim de semana em que li O Falecido Mattia Pascal, do siciliano Pirandello. Tanto o Quincas de Amado quanto Mattia afirmam no princípio de suas narrativas em primeira pessoa, repletas de monólogos, que morreram duas vezes. Mas o que une seus temas, contudo, é que tiveram duas vidas.

Quincas, servidor público aborrecido e oprimido por seu ambiente, larga família e círculo social, dedicando-se à boemia soteropolitana; Mattia, tido como morto, segue nova vida por diversos destinos da Europa vitoriana. Ambos percorrerão um longo caminho pra alcançarem lugares distintos, cada qual reconstruindo o significado das relações humanas e da própria existência.

Li o livro de Jorge Amado em que se baseia o roteiro do filme – A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de 1958 – há tempo suficiente pra que muita cosia me escape. Mas o principal pôde ser resgatado pelo filme de Sérgio Machado (Cidade Baixa e Onde a Terra Acaba). Lá estão os numerosos personagens de Jorge Amado, ricamente compostos, ainda que superficiais e caricatos; a linguagem debochada e sem pruridos; a incrível sensibilidade para o hilário, cercado pela miséria e amargura. Nesse último ponto, o filme possui grande mérito pela fotografia sombria e bela que contrasta com a constante comicidade do enredo, preservando – sem perder o riso – a gravidade que contém o texto e seu significado último.

Apesar de num primeiro plano ser uma grande festa, Quincas aborda com vigor o tema mais produtivo da grande literatura: a existência e suas realidades. Nosso protagonista abandona a segura e cômoda vida de funcionário por um cotidiano desregrado e temeroso. Nesta escolha, faz sua crítica ao mundo da filha, que confrontada pela realidade em que vivia o pai terá de lidar com sua herança.

O filme possui uma série de atuações notáveis, destacadamente Paulo José (um morto roubando a cena) e Mariana Ximenes no papel de Vanda, a filha. Muito se tem dito sobre os inegáveis talentos de Paulo José, esse formidável ator. Por isso mesmo quero dar atenção especial a Ximenes. Desde O Invasor, a jovem atriz chama atenção pela qualidade de suas atuações. Consegue ser intensa e eloquente sem os maneirismos recorrentes do cinema nacional, com uma forma de interpretar própria que só vemos nos grandes talentos.

Quincas, o filme, faz justiça a Quincas, o livro. E mais: lhe presta um favor. Sem atender à sedução de rebuscar ou encher de pompa e “eruditismo” o texto cru – e por vezes mesmo limitado – de Jorge Amado, o filme traz o autor em sua melhor forma, nos limites de seu alcance e com dignidade. Ano após ano, vemos péssimas adaptações virem a público, acumulando um grande lixo cinematográfico.

Felizmente, temos neste filme uma notável exceção. Quincas e Mattia partem de um mesmo sentimento de clausura para chegar a pontos distintos em sua trajetória. A aceitação debochada do próprio fim não deixa de ser um desesperado cinismo de Quincas, e o filme é feliz em deixar esta noção transparecer. Por isso e muito mais, Quincas não só vale ser visto como é provavelmente a melhor adaptação do cinema nacional desde Vidas Secas, lado a lado com Lavoura Arcaica. Isso vai soar um sacrilégio aos cinéfilos, mas como adaptação esse filme entrega tudo o que a obra de Jorge Amado oferece.




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