Longe do básico, quase 1 milhão de alunos estudam sem acesso regular à água potável no Brasil







Longe do básico, quase 1 milhão de alunos estudam sem acesso regular à água potável no Brasil







Cerca de 830 mil estudantes brasileiros frequentam escolas onde o acesso à água potável é inexistente ou inadequado, segundo dados do Censo Escolar de 2024. O levantamento revela que quase 650 mil alunos estão matriculados em unidades que não oferecem água própria para consumo humano, enquanto outros 180 mil estudam em escolas sem qualquer fornecimento regular de água. A situação expõe uma violação direta a um direito básico e compromete o cotidiano escolar, o aprendizado e a saúde de crianças e adolescentes em todo o país.

Até o ano passado, 6.658 escolas brasileiras funcionavam sem acesso à água potável. Essas unidades estão distribuídas por 26 estados, com maior concentração nas regiões Norte e Nordeste. O Pará lidera o ranking, com cerca de 1,9 mil escolas nessa condição. A gravidade do cenário levou à aprovação do Projeto de Lei nº 5.696/2023, transformado na Lei nº 12.276/25 e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A norma determina que União, estados e municípios garantam infraestrutura e saneamento básico nas escolas e autoriza o uso de recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para assegurar o abastecimento. A partir da vigência da lei, escolas que não comprovarem impossibilidade técnica ou falta de recursos poderão ter repasses suspensos.

Especialistas alertam que a ausência de água potável vai muito além de um problema estrutural. A psicóloga e professora Cheila Dias, da rede pública do Distrito Federal, destaca que a escassez interfere diretamente no desempenho escolar. “Sem água de qualidade, o aluno cansa mais rápido, perde a concentração e aprende menos”, afirma. Ela acrescenta que os impactos também são emocionais: irritabilidade, desmotivação e enfraquecimento do vínculo com a escola tornam-se frequentes. Para Cheila, conviver com a precariedade tende a naturalizar a negação de direitos e prejudica a formação cidadã.

Apesar do alcance do problema, o Ministério da Educação afirma que sua atuação se limita ao apoio técnico e financeiro para infraestrutura, atribuindo a responsabilidade pela qualidade da água aos estados, municípios e órgãos de saneamento e vigilância sanitária. A posição evidencia um desencontro institucional em um tema que afeta quase um milhão de estudantes.

A realidade ganha contornos concretos na Escola Sonhém de Cima, localizada na zona rural da Fercal, a apenas 46 quilômetros da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Embora o Distrito Federal não apareça entre as unidades federativas com escolas sem água potável no Censo Escolar, a unidade enfrenta abastecimento irregular da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb). A água chega a cada dois dias e não é suficiente para manter o funcionamento de uma escola de tempo integral com 170 alunos.

Para contornar o problema, a comunidade escolar recorreu a um poço artesiano, que garante o funcionamento de cozinhas, banheiros e salas de aula. Ainda assim, estudantes levam água de casa para beber. “A água daqui é salgada, dá dor de barriga”, relata Alicie Barbosa, de 10 anos. O colega Nicolas Rocha, de 11, diz que a sede e o calor dificultam a atenção em sala. Professores também enfrentam limitações: equipamentos como umidificadores só funcionam com água trazida de fora, pois o excesso de sal corrói os aparelhos.

A diretora da escola resume a situação como um esforço diário de sobrevivência institucional. “Se dependêssemos apenas da água da companhia, seria inviável. É o poço que mantém tudo de pé”, afirma. No entanto, especialistas alertam para os riscos. O nutricionista Guilherme Rodrigues explica que a água salobra pode conter alta concentração de minerais, elevando o risco de hipertensão e problemas renais, além de favorecer contaminações quando não tratada adequadamente.

Procurada, a Secretaria de Educação do DF não respondeu sobre medidas para garantir água potável na unidade. A Caesb, por sua vez, afirma que a água distribuída atende aos padrões do Ministério da Saúde e que realiza monitoramento contínuo.

A rotina da Sonhém de Cima não é exceção, mas retrato de uma realidade nacional marcada pelo improviso. Enquanto políticas públicas avançam lentamente, quase um milhão de estudantes seguem aprendendo em ambientes onde até o mais básico — água para beber — ainda não é garantido.


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