“Castigat Ridendo Mores”, I

Os sufis, místicos do Islã, acreditam que uma boa maneira de mudar as coisas, ou pelo menos de cambiar nossa percepção sobre as mesmas, é apontar seu absurdo e rir-se delas. Essa atitude guarda semelhança com a ideia do valor transformador positivo da sátira e da ironia, contida na divisa “castigat ridendo mores” (“corrige os costumes rindo”), aparentemente cunhada pelo poeta francês Abbé (Abade) Jean Baptiste de Santeul (1630–1697), que escrevia em latim sob o nome de Santolius Victorinus.

Esse lema foi improvisado por De Santeul para o ator Dominique, i.e., Giuseppe Domenico Biancolelli (‘Dominique le Père’). Nascido em Bolonha, Biancolelli foi para Paris em 1662 com uma trupe italiana, convidada pelo cardeal Mazarino, e ali adquiriu grande reputação por sua atuação inimitável nos papéis de Arlequim – que com Pierrô e Colombina formavam um triângulo amoroso na Commedia dell’Arte, nascida na Itália no século XVI.

O idioma português, assim como o italiano e o francês, tem a peculiaridade de associar o riso a dois adjetivos distintos, sendo que um deles, “ridículo” (ridiculo; ridicule), tem conotações mais pejorativas que o outro, “risível” (risibile/ridibile; risible).

Talvez possamos qualificar de risível a afirmação de Juracy Magalhães (1905-2001), enquanto ministro da justiça do regime militar de 1964 (em depoimento a J. A. Gueiros), de que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”, e de potencialmente ridícula a indicação de tal pessoa, em janeiro de 1966, para o cargo de ministro das relações exteriores (e não houve recentemente um filho de presidente que achou que se qualificava para ser embaixador nos EUA somente porque lá havia trabalhado “fritando” hambúrgueres?).
Um fato da biografia do ministro Juracy, que era do Ceará – terra de grandes humoristas – oferece um referencial importantíssimo para a contextualização de tudo isso: ele era um general da reserva, numa época em que tudo o que um general dizia tinha o status de pronunciamento muito sério.

Em 10/12/2002 o então presidente eleito Lula, que começou sua carreira política como opositor do regime militar de 1964, “fez graça” com a frase de Juracy ao afirmar (no National Press Club, Washington): “Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo americano fez da China seu parceiro comercial preferencial. E eu pensei comigo mesmo: ‘se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros’”.

O fato de esta sentença ter sido uma resposta tangencial a uma pergunta sobre a então aproximação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil e o Partido Comunista Chinês emprestou humor bastante irônico à reciclagem da frase de Magalhães.

A rememoração desses fatos faz-me recordar uma frase do pintor, literato e filósofo inglês William Hazlitt (1778-1839), em sua conferência/ensaio On Wit and Humour (“Sobre a Sagacidade e o Humor”), de 1818: “O homem é o único animal que ri e chora, porque é o único que se impressiona com a diferença que há entre o que é e o que deveria ser”…



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“Castigat Ridendo Mores”, I

Os sufis, místicos do Islã, acreditam que uma boa maneira de mudar as coisas, ou pelo menos de cambiar nossa percepção sobre as mesmas, é apontar seu absurdo e rir-se delas. Essa atitude guarda semelhança com a ideia do valor transformador positivo da sátira e da ironia, contida na divisa “castigat ridendo mores” (“corrige os costumes rindo”), aparentemente cunhada pelo poeta francês Abbé (Abade) Jean Baptiste de Santeul (1630–1697), que escrevia em latim sob o nome de Santolius Victorinus.

Esse lema foi improvisado por De Santeul para o ator Dominique, i.e., Giuseppe Domenico Biancolelli (‘Dominique le Père’). Nascido em Bolonha, Biancolelli foi para Paris em 1662 com uma trupe italiana, convidada pelo cardeal Mazarino, e ali adquiriu grande reputação por sua atuação inimitável nos papéis de Arlequim – que com Pierrô e Colombina formavam um triângulo amoroso na Commedia dell’Arte, nascida na Itália no século XVI.

O idioma português, assim como o italiano e o francês, tem a peculiaridade de associar o riso a dois adjetivos distintos, sendo que um deles, “ridículo” (ridiculo; ridicule), tem conotações mais pejorativas que o outro, “risível” (risibile/ridibile; risible).

Talvez possamos qualificar de risível a afirmação de Juracy Magalhães (1905-2001), enquanto ministro da justiça do regime militar de 1964 (em depoimento a J. A. Gueiros), de que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”, e de potencialmente ridícula a indicação de tal pessoa, em janeiro de 1966, para o cargo de ministro das relações exteriores (e não houve recentemente um filho de presidente que achou que se qualificava para ser embaixador nos EUA somente porque lá havia trabalhado “fritando” hambúrgueres?).
Um fato da biografia do ministro Juracy, que era do Ceará – terra de grandes humoristas – oferece um referencial importantíssimo para a contextualização de tudo isso: ele era um general da reserva, numa época em que tudo o que um general dizia tinha o status de pronunciamento muito sério.

Em 10/12/2002 o então presidente eleito Lula, que começou sua carreira política como opositor do regime militar de 1964, “fez graça” com a frase de Juracy ao afirmar (no National Press Club, Washington): “Eu não conhecia a China muito bem, até que o governo americano fez da China seu parceiro comercial preferencial. E eu pensei comigo mesmo: ‘se é bom para os americanos, deve ser bom para os brasileiros’”.

O fato de esta sentença ter sido uma resposta tangencial a uma pergunta sobre a então aproximação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil e o Partido Comunista Chinês emprestou humor bastante irônico à reciclagem da frase de Magalhães.

A rememoração desses fatos faz-me recordar uma frase do pintor, literato e filósofo inglês William Hazlitt (1778-1839), em sua conferência/ensaio On Wit and Humour (“Sobre a Sagacidade e o Humor”), de 1818: “O homem é o único animal que ri e chora, porque é o único que se impressiona com a diferença que há entre o que é e o que deveria ser”…


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