Categoria: Perfil Potiguar

  • Do bar, da casa, do povo: a história da dona de um cabaré que quer ingressar na vida política

    Do bar, da casa, do povo: a história da dona de um cabaré que quer ingressar na vida política

    Sabe aquelas situações em que dizemos “Isso só se vê em Natal mesmo?” Esta é uma delas. Hoje, apresento alguém que muitos já conhecem: Maria do Bar, a dona do mais antigo bordel de Natal. Mas quero apresentar também Maria das Dores, mãe, avó, amiga e que gosta de cuidar dos outros. Entre essas duas Marias, está a que deseja ingressar na vida política, atualmente candidata a vereadora.

    Conhecida por sua longa trajetória na noite, Maria das Dores da Silva, 65 anos, começou sua vida como garota de programa ao trabalhar como cozinheira em uma casa de uma família rica da capital potiguar. Recém-separada, seus filhos ficavam com a mãe, que tinha mais três filhas. O salário de Maria sustentava seis pessoas, mas os insumos duravam apenas até a quinta-feira.

    A governanta da casa, que sempre andava com joias e bem vestida, vendo a aflição de Maria, a convidou para sair uma noite. Ao chegar lá, Maria se deparou com uma casa cheia de homens ricos; foi sua primeira experiência no mundo da prostituição. “Naquela noite, ganhei o mesmo que ganhava em um mês como cozinheira, e na casa eu até ganhava bem”, comenta.

    Na noite seguinte, Maria foi novamente, e no quarto dia pediu demissão, alugou uma casa e trouxe sua família do interior para Natal, tornando-se uma das garotas da famosa Maria Boa, mas essa história fica para outro dia.

    Da Cozinha à Dona de Cabaré

    “Maria Boa sempre me dava conselhos, dizia que eu tinha jeito para negócios. Ela me ensinou muito e me incentivou a juntar dinheiro. Depois que ela morreu, eu abri meu próprio espaço. Aluguei uma casa, contratei algumas meninas e comecei meu empreendimento”, explica.

    Assim nasceu o Maria’s Bar, também conhecido como Cabaré de Maria. Maria não só cuidava da administração do local, como também ensinava as meninas a se comportar e assumia tarefas como cozinhar e lavar as roupas delas.

    De lá saíram 19 casamentos e muitos empreendimentos, como conta Maria. “As meninas vão para lá, passam um tempo, juntam dinheiro e, quando saem, investem em alguma coisa. Uma delas tem uma empresa de telhas, outras têm casa própria; uma saiu com 400 mil e empreendeu. As que continuam na casa vivem bem. Claro que enfrentam dificuldades e preconceitos; algumas se perdem nas drogas, mas muitas conseguem melhorar de vida”, afirma.

    Desde que abriu o bar, Maria deixou de fazer programas e se dedicou a fazer seu negócio dar certo. Por trás de uma história julgada por tantos, existe uma Maria que muitos não conhecem.

    Maria da Família

    Embora a vida noturna tenha proporcionado dignidade à sua família, também lhe roubou algo: a chance de ser uma mãe presente na educação de seus filhos. “Eu tinha medo de ir às reuniões de pais, de ir às apresentações e ser reconhecida por algum pai, receando que isso afetasse meus filhos. Isso me doía muito; eu queria estar presente e ver uma apresentação do Dia das Mães”, comenta.

    Apesar disso, Maria sempre fez o possível para que seus filhos se formassem. Mãe de seis, incluindo quatro adotivos, ela investiu pesado na educação de todos. “Quem quis fazer faculdade fez. Um deles tem duas graduações. Eu não estudei, mas fiz de tudo para que eles fossem para a escola.”

    Hoje, o preconceito é menor do que quando Maria abriu seu bar, mas ainda existem ocasiões em que mulheres cospem no chão ao vê-la. O preconceito e a repulsa alheia, provenientes de mulheres cujos homens frequentaram o bar de Maria, não a abalam e nunca mudaram seus desejos de ajudar os outros.

    Maria gosta de trabalho braçal, de cuidar de seu sítio, de estar com a família e de passar tempo com suas meninas, conversando sobre a vida e dando conselhos. “Dizem que você nasce destinado a fazer aquilo. Acho que o meu é ajudar pessoas. Mainha sempre dizia que, quando criança, eu dividia tudo que tinha, mesmo que ficasse sem. Teve uma vez, com 4 anos, em que um homem passou pedindo lençol porque estava muito frio; eu ia dar o meu, mas minha mãe não deixou, porque só tinha aquele”, relembra.

    Movida pela vontade de ajudar, desde que abriu seu negócio, Maria apoia cerca de 25 instituições, como o Juvino Barreto e o Varela Santiago. Em uma de suas propriedades, uma granja, ela encanou água para a população que vive nas redondezas, em casas de taipa. “Nunca fiz nada disso pensando em retorno. Eu nem acreditava que podia me candidatar. Ajudo porque, nessa vida, não vou levar nada, então vou fazer o bem.”

    Do cabaré à vida política

    Muitas pessoas começaram a sugerir que Maria se candidatasse, acreditando que ela faria uma boa gestão. No entanto, ela não acreditava que uma mulher sem estudo conseguiria se eleger. Mesmo assim, viu a oportunidade de fazer mais e se lançou como candidata a deputada estadual.

    Durante a campanha, Maria ficou abalada ao notar que algumas pessoas apenas queriam crescer em cima dela e pensou em desistir. Apesar de se sentir “um nada” e decepções com falsos apoiadores, ela prosseguiu e alcançou 850 votos, um número que a surpreendeu.

    Agora, em 2024, parte da história se repete. Novamente incentivada, sua relutância foi maior, primeiro porque notou que ainda havia pessoas querendo se promover em cima dela e, segundo, devido a problemas com a pessoa que cuidou de seu dinheiro na última campanha. “Em quem posso confiar?”, indaga.

    A vontade de ajudar falou mais alto, desafiando seus “traumas” e a falta de apoio familiar. “Minha mãe não queria, porque viu que da outra vez me enganaram”, comenta. Agora, Maria é candidata a vereadora pelo partido PSB, com o slogan “Putaria por putaria, vote na Maria”, uma frase engraçada que, por trás, carrega a vontade de trazer esperança à população.

    Suas propostas focam no Alecrim. A primeira é a criação de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). “É um dos bairros que mais paga impostos e não tem uma UPA? Tem que sair para a cidade da criança ou para as Rocas. Ali tem um terreno que dá certinho para colocar uma UPA”, explica, destacando a necessidade de uma infraestrutura que atenda à população local.

    Além disso, ela propõe a criação de uma creche para que as mães possam trabalhar. A ideia surgiu de conversas com mulheres que trabalham com reciclagem e não têm com quem deixar os filhos, levando-os juntos. “Imagina que triste, crianças sem escola, sem saber quando vão comer, e as mães tendo que catar latinha. Quero que elas possam ter um local onde saibam que seus filhos estão seguros e alimentados”, conclui.

    Maria também propõe um abrigo para moradores de rua, reconhecendo que essa população sofre não só com a falta de abrigo, mas também com a violência e o preconceito. “Existem tantos moradores de rua, e o pior é que as pessoas ainda cometem crimes contra eles”, diz com empatia.

    Faltando dez dias para as eleições, Maria está feliz com a campanha que vem fazendo. Em suas andanças ela tenta desmistificar a ideia de que sua profissão a define como alguém sem caráter. Ela sabe que a essência de uma pessoa vai muito além do que faz para viver.

    Em suas conversas, Maria fala sobre suas experiências e como elas moldaram sua visão de mundo. Mostra que seu trabalho a tornou mais empática e compreensiva e contra qualquer tipo de preconceito. Para ela, um grande coração é aquele que se importa e luta por um futuro melhor, e é isso que quer transmitir às pessoas.

    Ela está pronta para o desafio, confiante de que seu amor por ajudar o próximo e por sua comunidade a levará adiante. Em cada passo, Maria deixa claro que sua verdadeira riqueza está em suas relações e na vontade de fazer a diferença.

  • Tudo pelo sonho

    Tudo pelo sonho

    Rosinaldo Lobo, aos 54 anos, deu com a cara na parede em busca do sonho de se tornar jornalista; mas chutou a porta e fez seu próprio caminho

    Rosinaldo começou seu curso de jornalismo na modalidade semipresencial. Mas, com poucos meses após o início da graduação, ele foi demitido e não teve como pagar as mensalidades, tendo que trancar o curso.

    Ele recomeçou o curso quando voltou a trabalhar, e a frustração veio forte quando, após 6 meses, foi demitido novamente. Pela segunda vez seu sonho era “roubado”, após começar a sentir o gosto de ser um estudante de jornalismo.

    Sempre acompanhado de bons amigos, ele relembra que, após a última frustração, recebeu o apoio de um grande amigo e jornalista, que não o deixou desistir e hoje é como um guia e professor para ele.

    “Eu lembro que ele me disse: Lobo, faça. Com unhas e dentes, faça e enfrente todos os obstáculos. Não vai ser uma besteirinha dessa que vai fazer você desistir.”

    Foi a partir daí que Rosinaldo começou a trabalhar como moto uber para conseguir pagar o curso e as despesas básicas de casa. Agora, voltando ao curso, queria sentir na pele o que é fazer jornalismo. Então saiu de emissora em emissora pedindo estágio, chegou a fazer entrevistas em uma delas, mas não passou.

    As faltas de respostas o fizeram questionar se sua idade seria o problema. “Me perguntei: será que não querem um coroa pra ser jornalista? Fiquei desanimado, mas tem algo dentro de mim que não me deixa baixar a cabeça.”

    Hoje, aos 54 anos, Rosinaldo está no segundo semestre do tão almejado curso e é estagiário de um portal de notícias e jornal impresso, onde se destaca por sua desenvoltura, simpatia e seu faro para notícias.

    Entre erros e acertos, Rosinaldo está cada dia mais determinado a seguir com seu sonho, e cheio de planos ele comenta sobre as experiências que vem adquirindo durante a nova fase de sua vida.

    “Tô gostando muito, é ainda melhor do que imaginei. Quando tenho que ir a lugares que têm jornalistas conhecidos, eu fico observando eles, tento aprender o máximo. Às vezes me sinto como se fosse um jornalista formado.”

    Pé no jornalismo

    De suas rotas como moto uber, Rosinaldo extrai muitas de suas histórias originais que vêm conquistando os leitores potiguares. Foto: Taís Ramos.

    Assim que ingressou no curso, Rosinaldo criou um perfil no Instagram e depois na plataforma YouTube. O Natal Web News surgiu para compartilhar notícias, divulgar eventos e fazer coberturas do que viesse acontecer em Natal e pela região.

    O intuito principal era aprender na prática como ser um jornalista: como se comportar, editar, como abordar as pessoas.

    Agora, seus planos são de se aventurar na elaboração de Podcasts. Com um programa já gravado, Rosinaldo possui mais três temas prontos e com temáticas bem interessantes. E pretende abordar de tudo e mais um pouco.

    “Existe o podcast só áudio e o que é áudio e vídeo, vamos gravar na segunda opção, porque assim eu também alimento meu canal. E vamos falar de política, meio ambiente, tudo que quiserem saber”, diz Rosinaldo, empolgado com os planos.

    Diante de todos os desafios, de todas as vezes que o estímulo para deixar o sonho de lado foi maior do que o apoio de quem acreditava nele, de todas as negativas e das zombarias por insistir tanto em seu sonho, uma coisa é certa: sua trajetória nos ensina que a jornada é tão importante quanto o destino e que nunca é tarde para lutar pelo que se ama.

  • A vingança fantasiada na Rua do Patu

    A vingança fantasiada na Rua do Patu

    Por Gláucio Tavares Costa*

    Na cara de homem não se bate. Homem se mata! Certificou a vítima ao seu algoz ao ser esbofeteada, ainda prometendo a si que não tiraria a sua barba enquanto não matasse o vil ofensor. No Carnaval de anos após o dia da agressão, fantasiado de caçador dos Caboclinhos, com espingarda em punho, quando a barba já escondia completamente o rosto, a vítima concretizou a sua vingança na Rua do Patu, em Ceará-Mirim, nos anos de 1950.


    Atualmente em Ceará-Mirim no cruzamento entre a Rua Mussolino China, mais conhecida como a Rua do Sindicato Rural e a Rua Euclides Cavalcante, aquela que desce da Rua do SAAE até o Mercado da Fruta, encontra-se uma movelaria. Neste local, nos interessa lembrar que há cerca de oitenta anos era instalada a Bodega de João Granjeiro, na qual antes das variedades corria extenso balcão, cuja extremidade continha o recanto do consumo de cachaças, vinhos e conhaques, como de costumes nas bodegas daquela época.


    Um dos frequentadores da mencionada mercearia era Antônio Mulato, cujo ofício, naquele tempo em que não havia sistema de abastecimento de água encanada, era botador de água, com a missão diária de encher barricas no olheiro situado às margens do Rio dos Homens, arrumar as pipas no lombo dos burros, subir a ladeira pela Rua do Burros, depois apelidada de Rua do Bacurau, certamente por conta da marcante campanha do ex-governador Aluísio Alves em 1960, e distribuir água pela cidade. Afora ser conhecido por tal serventia, Antônio Mulato tinha por marca a valentia e a insolência. Era do tipo que não levava desaforo para casa.

    Como nas mercearias da época, na Bodega de João Granjeiro havia um caderno para anotar as compras feitas com promessa de pagamento adiante. Entre essas anotações estava o nome de Antônio Mulato, que certa feita estava bem atrasado com os seus compromissos creditícios, sendo pertinente para o comerciante frustrar novas compras a míngua de pagamento das antecedentes registradas no caderno dos fiados. Nestas circunstâncias de velhacaria, Antônio Mulato chegou na Bodega de João Granjeiro e requisitou uma dose de cachaça. Contudo, não olvidando da dívida em demora, o bodegueiro negou a pinga, condicionando: “para beber aqui ou você paga a dose ou paga a conta.”

    Neste ensejo, Antônio Mulato recebeu a rejeição do seu pedido de beber cachaça fiado como grave ofensa e de pronto, desferiu um tapa no rosto de João Granjeiro, que imediatamente teve todas as veredas neuronais atiçadas pelo bofete, articulando-se os humores do corpo de forma a produzir e elevar os sentimentos de ira, de indignação e de fúria ardente. Diagnostica-se que o sangue ferveu, mas que, no entanto, teve por travão de um embate corpo a corpo com ofensor o temor do histórico de brigas e desacatos do corpanzil de Antônio Mulato. Mesmo assim, o ultrajado comerciante, ainda atordoado, num impulso de valentia, advertiu: na cara de homem não se bate. Homem se mata!


    Na ocasião da confusão, havia outras pessoas presentes na mercearia e na calçada da venda, vindo a intervir a turma do deixa disso, levando Antônio Mulato para fora da bodega e para mais além. Do lado de dentro da mercearia, a injusta agressão deflagrou sentimentos abjetos em João Granjeiro. A dor física era imperceptível, mas a dor moral era excruciante e persistente. Ao se ver no espelho após o insulto, com o rosto avermelhado, a vergonha de ter a sua reputação enxovalhada levou a uma promessa insólita: “de agora em diante, só vou tirar a barba quando matar Antônio Mulato”, sentenciou João Granjeiro.

    Solidariedade de muitos vieram em conforto à vítima, que, no entanto, mantinha incólume a cólera, eis que o tapa na cara constitui especial falta de respeito e violou profundamente a dignidade. Decerto, a mãozada no rosto feriu mais do que mil chutes e bofetes em outras partes do corpo. Quando desses trágicos episódios, normalmente a vítima não se recorda da nobre lição de Jesus Cristo talhada no Livro do apóstolo Mateus: “Se alguém lhe der um tapa na face, ofereça o outro lado para ele bater também.” João Granjeiro não atentou para tal ensinamento e nem o passar do tempo aplacou o seu enfurecimento: a vingança é um dos sentimentos mais poderosos.


    Passados anos do fatídico dia, os fios da barba de João Granjeiro já estavam enormes. Maior do que a barba só o persistente desejo de vingança, que somente não fora consolidada ainda porque lhe era desfavorável um confronto direto com Antônio Mulato, que além da compleição física avantajada, era acostumado a brigas e querelas, nas quais sempre levava vantagem. Desta feita, era preciso para o sucesso da vindita, quem sabe uma emboscada, ardil ou um disfarce?

    Se aproximava o Carnaval de um daqueles anos da década de 1950, quando haveria a apresentação dos Caboclinhos, caracterizado pela encenação de vigorosas coreografias em ritmo marcado pelo estalido das preacas, espécie de arco e flecha de madeira. Na dança folclórica, grupos fantasiados de índios que, com vistosos cocares, adornos de pena na cinta e nos tornozelos, colares, representam cenas de caça e combate, os nativos revoltam-se contra um caçador, matando-o ao final da exibição. A vítima vislumbrou nesta particularidade carnavalesca a oportunidade de sair armado pelas ruas, sem chamar atenção. Para tanto, a vítima cuidou em adquirir uma fantasia de caçador. Logo, estavam prontos o macacão, o chapéu, o suporte do carregador, o alforje e a espingarda.


    Os preparativos da vingança ainda estavam incompletos, eis que faltava municiar a espingarda, razão pela qual a vítima ressentida foi até a Rua do Patu, nas proximidades do SAAE, na Oficina de Zé da Luz, onde adquiriu pequenos fragmentos de ferro, perguntando ao oficineiro se três bolotas de ferro eram suficientes para matar um veado quando arremessadas por uma espingarda de soca. A reposta foi positiva.


    Tudo estava pronto para a vindita. Chegou o Carnaval. Os Caboclinhos apresentavam-se no final da tarde da Rua do Patu, nas proximidades do Bar de Dona Alice, em frente a Escola General João Varela. Na tradicional coreografia folclórica, os índios investem contra um caçador que invade o paraíso dos nativos.

    O disfarce de caçador coube a João Granjeiro vestir, depois de carregar cuidadosamente a espingarda de soca, com a pólvora, a limalha, dentre as quais se arrumou as bolotas de ferro. Na fantasia de carnaval, agregava-se a longa barba esculpida pela promessa de vingança e um certo tropeço aqui e acolá a fingir uma embriaguez, com aptidão de afastar desconfianças acerca do intuito vingativo. E de fato ninguém imaginou que João Granjeiro subia na Rua do Patu a procura do seu algoz, ao meio das festividades carnavalesca.

    Imbuído da ideia de dente por dente e olho por olho, o caçador tal como uma águia faminta, com visão aguçada pelo desejo de vingança, avistou de longe a sua caça, que se encontrava festejando o Carnaval, tomando uns bons bocados no Bar de Dona Alice, onde depois se instalou a Lanchonete de Dona Santa e atualmente é uma açaiteria, na esquina do encontro entre a Rua do Patu e a Rua Manoel Marques, mais conhecida como a Rua do Enéas. Numa das mesas do bar estava Antônio Mulato, já flertando com estado de embriaguez, contemplando o Carnaval.

    Ao perceber a distração da presa, uma certa altivez cresceu em João Granjeiro, que teve a perspicácia de passar direto pelo outro lado da rua, a procura da melhor posição para abater a infame caça. Arrodeou a presa, cruzou a rua entre o vai e vem dos foliões, aproximou-se do bar, rente a parede exterior do prédio, esperou Antônio Mulato dirigir toda atenção às alegorias carnavalescas em desfile na rua, quando então aprumou a espingarda e atirou, atingindo de cheio o odiado inimigo.

    As bolotas de ferro e demais detritos deflagrados da arma de fogo rasgaram à queima-roupa o corpanzil de Antônio Mulato, causando-lhe imediata hemorragia e concomitantemente o despertar da fúria, quando olhou no olho do atirador, reconhecendo João Granjeiro ainda que no escondedura de caçador com o rosto encoberto pela longa barba. Antônio Mulato, muito ferido, ainda conseguiu levantar-se e correr, deixando um rastro de sangue, na perseguição do atirador.

    João Granjeiro partiu primeiro, imaginando que as bolotas de ferro não teriam sido suficientes para abater Mulato, que, por sua vez, no ínterim do encalce de João Granjeiro, foi faltando-lhe oxigênio e força à proporção que deixava porções de sangue no caminho, até que João Granjeiro, em sua aflita fuga, deixou cair a espingarda, que fez Antônio Mulato tropeçar e cair pela derradeira vez na vida a demonstrar que a vingança suplantou a valentia nas proximidades da Oficina de Zé da Luz, de onde se adquiriu as mortíferas bolotas de ferro.


    Esta história foi-me contada pelo senhor Augusto Cavaco em um dos dias do Carnaval de 2022 na Praia de Jacumã. Adverte-se que boa parte deste conto é mera ficção, obra de criação literária.

    Gláucio Tavares Costa é Assessor Jurídico do TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e cronista.

  • Uma aula improvisada com o professor Cassiano Arruda Câmara

    Uma aula improvisada com o professor Cassiano Arruda Câmara

    por Girotto

    Por que danado um sujeito respeitado e admirado por todos em seu meio, ícone de toda uma geração de jornalistas, mestre e referência de tantos ex-alunos e excelente em tudo o que fez, por que danado um cara desses resolve aos 64 anos fundar um jornal diário?

    “Eu precisava saber como é dono de jornal”, diz Cassiano Arruda Câmara. “Já fiz de tudo no jornalismo e na propaganda. Fui redator, repórter de rua, editor, professor. Fiz programa de televisão, de rádio. Até hoje faço. Só não fui ator.E ainda não tinha sido dono de jornal. Faltava essa experiência de ter um jornal. E fiz.”

    No dia 27 de outubro de 2017, saía às ruas a edição de número 2.469 do Novo Jornal, fundado por Cassiano Arruda em 17 de novembro de 2009. A manchete daquela sexta-feira seria a última do jornal sob o comando do mestre Cassiano: “Para MPF, Henrique tenta ocultar bens e valores de propina”. Antes dos afetos, o velho repórter sempre pôs a notícia.

    Cassiano aos 63 anos: “Faltava ser dono de jornal.” Foto: acervo pessoal.

    “Realizei o sonho. E sou muito grato por isso, muito feliz. Nós pegamos a transição do jornal impresso para o online. Minha vontade, meu desejo à época era fazer o impresso, sentir o cheiro do papel pela manhã”, diz Cassiano. “Mas as coisas mudam. Mudaram quando Johann Gutenberg criou a prensa, imagino o que foi na vida de quem trabalhava com caligrafia. Então não tem do que reclamar. Fizemos o jornal por oito anos e foi uma experiência que me marcou.”

    Quando fundou seu jornal, Cassiano era professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em sua sala de aula, embasbacado pela novidade, este aspirante a repórter via o exemplo do professor e começava a alimentar devaneios duradouros.

    O jornal do professor Cassiano durou pouco? Muitos sucumbiram ao surgimento das redes online. De jornais a políticos e empresas. O fato inegável é que o Novo, sob a liderança de Cassiano, foi um ar fresco, uma renovação no combalido jornalismo potiguar. Valeu para ele, que realizava o sonho de ser “dono de jornal”. Valeu também para minha geração que, talvez no ocaso de uma tradição (o jornalismo impresso), pôde sentir o aroma das grandes reportagens que não voltaríamos a ver por aqui.

    “A melhor coisa que fiz foi ensinar”, diz. “Era professor de 20 horas. E vivia tendo greves, com aquela inflação do Sarney, não tinha como segurar o salário. Mas falei com meus alunos e disse que a gente estava só perdendo, porque não havia reposição de aula coisa nenhuma. Eu queria dar aula.”

    Foram 31 anos como professor do curso de Comunicação Social da UFRN. Cassiano marcou com suas lições 62 turmas de estudantes e parece ter uma memória prodigiosa, lembra os nomes e rostos de grande parte deles.

    Sentado ali diante da mesa onde, de segunda a sexta, escreve sua coluna e transmite ao vivo um programa de rádio, logo o mestre inverte o jogo e começa ele a entrevistar. Não sei bem se é curiosidade por um ex-aluno ou apenas alguma modéstia desnecessária de não querer falar de si.

    “Você precisa encontrar seu público, ser relevante para ele”, aconselha. Segue sendo professor, ele que foi aluno da primeira turma de jornalismo do Rio Grande do Norte, na Faculdade Eloy de Souza.

    “Ali uma geração inteira de jornalistas experientes teve seu primeiro contato com a academia. Muitos deles acabariam seguindo a docência”, conta. Era 1963. Um ano mais tarde, o golpe militar de 31 de março instauraria a ditadura que cassou, em 1969, o governador, amigo e também patrão Aluízio Alves.

    “Um grande homem e um governador gigante. Pra você ter uma ideia do que foi o governo de Aluízio… Sabe qual foi o primeiro escândalo da gestão dele? Saiu na capa do Correio do Povo, do Dinarte Mariz: ‘Governador instala ar-condicionado no gabinete’. Era o que tinham para atacá-lo.”

    “Fui criado pra ser político”, diz. “Meu pai me mandou pra Salvador estudar, mas enrolei ele. E quando voltei, fui trabalhar na agência de Fernando Luiz da Câmara Cascudo, que trazia pra Natal nossa primeira agência moderna, como conhecemos hoje.”

    Aos 6 anos discursou em Santa Cruz no palanque do futuro governador Dix-Sept Rosado: “Fui criado pra ser político”. Foto: acervo pessoal.

    “Tudo estava por fazer.” Assim Cassiano descreve o clima na imprensa potiguar e brasileira dos anos 1960, quando começou na profissão sendo “o que sempre fui, um repórter que corre atrás”.

    “O pessoal chegava pra mim e dizia ‘você escreve muito bem’. Eu ficava rindo e tentava explicar pra eles. Hoje seria até mais difícil entenderem, porque acabou a figura do copydesk. Mas ali na Tribuna quem revisava meus textos e passava a caneta eram caras como Berilo Wanderley, Sanderson Negreiros, Newton Navarro, Luiz Carlos Guimarães. Aí o texto ficava ótimo, né”, diz, se divertindo muito com a história.

    “Sempre fui de direita. Mas de uma direita inteligente, julgo. No RN não havia isso à época. Hoje existe”, diz Cassiano que não poupa nem a Operação Lava-Jato: “A ditadura do judiciário foi tão ruim quanto a outra”.

    Neste ano, Cassiano lançou seu terceiro livro, reunindo 50 anos de reportagens. A edição estava pronta para ser lançada em 2020, mas acabou ficando num galpão devido à pandemia. Neste período, o mestre enfrentou um câncer e contou o apoio da Liga Contra o Câncer. Passadas as duas lutas, Cassiano doou os 1.300 exemplares para a Liga, que foram lançados em evento concorrido no mês de março.

    A hora avança sem sinais, o mestre começa a preparar o fim da aula.

    “Aprendi a desconfiar de tudo”, diz, justificando porque não publica releases de assessorias de imprensa que não lhe interessem e nunca sem antes ir atrás de saber da história direito. “Não vou entregar minha credibilidade a um fulano porque ele recebe um troco de alguém.”

    Aos 80 anos, o mestre segue ativo e rigoroso no trabalho. “É uma atitude de vida”, diz. E a conversa, para desgosto do aluno, terá que acabar. “Tenho compromisso de fechar jornal. Tenho que buscar notícias.”

    Saio da sala de aula cheio de sonhos malucos na cabeça. Coisa de quem se ilude estar à altura dos mestres. Dali a 20 minutos, Cassiano Arruda Câmara entrará ao vivo na rádio, com sua voz já marcada mas de um timbre genuinamente cativante. Corri pra casa ouvir a transmissão pela internet mesmo. O que será que tiraria da cartola em menos de 20 minutos, já que lhe tomei toda a manhã?