Uma aula improvisada com o professor Cassiano Arruda Câmara



Imagem Magnus Nascimento




por Girotto

Por que danado um sujeito respeitado e admirado por todos em seu meio, ícone de toda uma geração de jornalistas, mestre e referência de tantos ex-alunos e excelente em tudo o que fez, por que danado um cara desses resolve aos 64 anos fundar um jornal diário?

“Eu precisava saber como é dono de jornal”, diz Cassiano Arruda Câmara. “Já fiz de tudo no jornalismo e na propaganda. Fui redator, repórter de rua, editor, professor. Fiz programa de televisão, de rádio. Até hoje faço. Só não fui ator.E ainda não tinha sido dono de jornal. Faltava essa experiência de ter um jornal. E fiz.”

No dia 27 de outubro de 2017, saía às ruas a edição de número 2.469 do Novo Jornal, fundado por Cassiano Arruda em 17 de novembro de 2009. A manchete daquela sexta-feira seria a última do jornal sob o comando do mestre Cassiano: “Para MPF, Henrique tenta ocultar bens e valores de propina”. Antes dos afetos, o velho repórter sempre pôs a notícia.

Cassiano aos 63 anos: “Faltava ser dono de jornal.” Foto: acervo pessoal.

“Realizei o sonho. E sou muito grato por isso, muito feliz. Nós pegamos a transição do jornal impresso para o online. Minha vontade, meu desejo à época era fazer o impresso, sentir o cheiro do papel pela manhã”, diz Cassiano. “Mas as coisas mudam. Mudaram quando Johann Gutenberg criou a prensa, imagino o que foi na vida de quem trabalhava com caligrafia. Então não tem do que reclamar. Fizemos o jornal por oito anos e foi uma experiência que me marcou.”

Quando fundou seu jornal, Cassiano era professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em sua sala de aula, embasbacado pela novidade, este aspirante a repórter via o exemplo do professor e começava a alimentar devaneios duradouros.

O jornal do professor Cassiano durou pouco? Muitos sucumbiram ao surgimento das redes online. De jornais a políticos e empresas. O fato inegável é que o Novo, sob a liderança de Cassiano, foi um ar fresco, uma renovação no combalido jornalismo potiguar. Valeu para ele, que realizava o sonho de ser “dono de jornal”. Valeu também para minha geração que, talvez no ocaso de uma tradição (o jornalismo impresso), pôde sentir o aroma das grandes reportagens que não voltaríamos a ver por aqui.

“A melhor coisa que fiz foi ensinar”, diz. “Era professor de 20 horas. E vivia tendo greves, com aquela inflação do Sarney, não tinha como segurar o salário. Mas falei com meus alunos e disse que a gente estava só perdendo, porque não havia reposição de aula coisa nenhuma. Eu queria dar aula.”

Foram 31 anos como professor do curso de Comunicação Social da UFRN. Cassiano marcou com suas lições 62 turmas de estudantes e parece ter uma memória prodigiosa, lembra os nomes e rostos de grande parte deles.

Sentado ali diante da mesa onde, de segunda a sexta, escreve sua coluna e transmite ao vivo um programa de rádio, logo o mestre inverte o jogo e começa ele a entrevistar. Não sei bem se é curiosidade por um ex-aluno ou apenas alguma modéstia desnecessária de não querer falar de si.

“Você precisa encontrar seu público, ser relevante para ele”, aconselha. Segue sendo professor, ele que foi aluno da primeira turma de jornalismo do Rio Grande do Norte, na Faculdade Eloy de Souza.

“Ali uma geração inteira de jornalistas experientes teve seu primeiro contato com a academia. Muitos deles acabariam seguindo a docência”, conta. Era 1963. Um ano mais tarde, o golpe militar de 31 de março instauraria a ditadura que cassou, em 1969, o governador, amigo e também patrão Aluízio Alves.

“Um grande homem e um governador gigante. Pra você ter uma ideia do que foi o governo de Aluízio… Sabe qual foi o primeiro escândalo da gestão dele? Saiu na capa do Correio do Povo, do Dinarte Mariz: ‘Governador instala ar-condicionado no gabinete’. Era o que tinham para atacá-lo.”

“Fui criado pra ser político”, diz. “Meu pai me mandou pra Salvador estudar, mas enrolei ele. E quando voltei, fui trabalhar na agência de Fernando Luiz da Câmara Cascudo, que trazia pra Natal nossa primeira agência moderna, como conhecemos hoje.”

Aos 6 anos discursou em Santa Cruz no palanque do futuro governador Dix-Sept Rosado: “Fui criado pra ser político”. Foto: acervo pessoal.

“Tudo estava por fazer.” Assim Cassiano descreve o clima na imprensa potiguar e brasileira dos anos 1960, quando começou na profissão sendo “o que sempre fui, um repórter que corre atrás”.

“O pessoal chegava pra mim e dizia ‘você escreve muito bem’. Eu ficava rindo e tentava explicar pra eles. Hoje seria até mais difícil entenderem, porque acabou a figura do copydesk. Mas ali na Tribuna quem revisava meus textos e passava a caneta eram caras como Berilo Wanderley, Sanderson Negreiros, Newton Navarro, Luiz Carlos Guimarães. Aí o texto ficava ótimo, né”, diz, se divertindo muito com a história.

“Sempre fui de direita. Mas de uma direita inteligente, julgo. No RN não havia isso à época. Hoje existe”, diz Cassiano que não poupa nem a Operação Lava-Jato: “A ditadura do judiciário foi tão ruim quanto a outra”.

Neste ano, Cassiano lançou seu terceiro livro, reunindo 50 anos de reportagens. A edição estava pronta para ser lançada em 2020, mas acabou ficando num galpão devido à pandemia. Neste período, o mestre enfrentou um câncer e contou o apoio da Liga Contra o Câncer. Passadas as duas lutas, Cassiano doou os 1.300 exemplares para a Liga, que foram lançados em evento concorrido no mês de março.

A hora avança sem sinais, o mestre começa a preparar o fim da aula.

“Aprendi a desconfiar de tudo”, diz, justificando porque não publica releases de assessorias de imprensa que não lhe interessem e nunca sem antes ir atrás de saber da história direito. “Não vou entregar minha credibilidade a um fulano porque ele recebe um troco de alguém.”

Aos 80 anos, o mestre segue ativo e rigoroso no trabalho. “É uma atitude de vida”, diz. E a conversa, para desgosto do aluno, terá que acabar. “Tenho compromisso de fechar jornal. Tenho que buscar notícias.”

Saio da sala de aula cheio de sonhos malucos na cabeça. Coisa de quem se ilude estar à altura dos mestres. Dali a 20 minutos, Cassiano Arruda Câmara entrará ao vivo na rádio, com sua voz já marcada mas de um timbre genuinamente cativante. Corri pra casa ouvir a transmissão pela internet mesmo. O que será que tiraria da cartola em menos de 20 minutos, já que lhe tomei toda a manhã?


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“Eu precisava saber como é dono de jornal”, diz Cassiano Arruda Câmara. “Já fiz de tudo no jornalismo e na propaganda. Fui redator, repórter de rua, editor, professor. Fiz programa de televisão, de rádio. Até hoje faço. Só não fui ator.E ainda não tinha sido dono de jornal. Faltava essa experiência de ter um jornal. E fiz.”

No dia 27 de outubro de 2017, saía às ruas a edição de número 2.469 do Novo Jornal, fundado por Cassiano Arruda em 17 de novembro de 2009. A manchete daquela sexta-feira seria a última do jornal sob o comando do mestre Cassiano: “Para MPF, Henrique tenta ocultar bens e valores de propina”. Antes dos afetos, o velho repórter sempre pôs a notícia.

Cassiano aos 63 anos: “Faltava ser dono de jornal.” Foto: acervo pessoal.

“Realizei o sonho. E sou muito grato por isso, muito feliz. Nós pegamos a transição do jornal impresso para o online. Minha vontade, meu desejo à época era fazer o impresso, sentir o cheiro do papel pela manhã”, diz Cassiano. “Mas as coisas mudam. Mudaram quando Johann Gutenberg criou a prensa, imagino o que foi na vida de quem trabalhava com caligrafia. Então não tem do que reclamar. Fizemos o jornal por oito anos e foi uma experiência que me marcou.”

Quando fundou seu jornal, Cassiano era professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em sua sala de aula, embasbacado pela novidade, este aspirante a repórter via o exemplo do professor e começava a alimentar devaneios duradouros.

O jornal do professor Cassiano durou pouco? Muitos sucumbiram ao surgimento das redes online. De jornais a políticos e empresas. O fato inegável é que o Novo, sob a liderança de Cassiano, foi um ar fresco, uma renovação no combalido jornalismo potiguar. Valeu para ele, que realizava o sonho de ser “dono de jornal”. Valeu também para minha geração que, talvez no ocaso de uma tradição (o jornalismo impresso), pôde sentir o aroma das grandes reportagens que não voltaríamos a ver por aqui.

“A melhor coisa que fiz foi ensinar”, diz. “Era professor de 20 horas. E vivia tendo greves, com aquela inflação do Sarney, não tinha como segurar o salário. Mas falei com meus alunos e disse que a gente estava só perdendo, porque não havia reposição de aula coisa nenhuma. Eu queria dar aula.”

Foram 31 anos como professor do curso de Comunicação Social da UFRN. Cassiano marcou com suas lições 62 turmas de estudantes e parece ter uma memória prodigiosa, lembra os nomes e rostos de grande parte deles.

Sentado ali diante da mesa onde, de segunda a sexta, escreve sua coluna e transmite ao vivo um programa de rádio, logo o mestre inverte o jogo e começa ele a entrevistar. Não sei bem se é curiosidade por um ex-aluno ou apenas alguma modéstia desnecessária de não querer falar de si.

“Você precisa encontrar seu público, ser relevante para ele”, aconselha. Segue sendo professor, ele que foi aluno da primeira turma de jornalismo do Rio Grande do Norte, na Faculdade Eloy de Souza.

“Ali uma geração inteira de jornalistas experientes teve seu primeiro contato com a academia. Muitos deles acabariam seguindo a docência”, conta. Era 1963. Um ano mais tarde, o golpe militar de 31 de março instauraria a ditadura que cassou, em 1969, o governador, amigo e também patrão Aluízio Alves.

“Um grande homem e um governador gigante. Pra você ter uma ideia do que foi o governo de Aluízio… Sabe qual foi o primeiro escândalo da gestão dele? Saiu na capa do Correio do Povo, do Dinarte Mariz: ‘Governador instala ar-condicionado no gabinete’. Era o que tinham para atacá-lo.”

“Fui criado pra ser político”, diz. “Meu pai me mandou pra Salvador estudar, mas enrolei ele. E quando voltei, fui trabalhar na agência de Fernando Luiz da Câmara Cascudo, que trazia pra Natal nossa primeira agência moderna, como conhecemos hoje.”

Aos 6 anos discursou em Santa Cruz no palanque do futuro governador Dix-Sept Rosado: “Fui criado pra ser político”. Foto: acervo pessoal.

“Tudo estava por fazer.” Assim Cassiano descreve o clima na imprensa potiguar e brasileira dos anos 1960, quando começou na profissão sendo “o que sempre fui, um repórter que corre atrás”.

“O pessoal chegava pra mim e dizia ‘você escreve muito bem’. Eu ficava rindo e tentava explicar pra eles. Hoje seria até mais difícil entenderem, porque acabou a figura do copydesk. Mas ali na Tribuna quem revisava meus textos e passava a caneta eram caras como Berilo Wanderley, Sanderson Negreiros, Newton Navarro, Luiz Carlos Guimarães. Aí o texto ficava ótimo, né”, diz, se divertindo muito com a história.

“Sempre fui de direita. Mas de uma direita inteligente, julgo. No RN não havia isso à época. Hoje existe”, diz Cassiano que não poupa nem a Operação Lava-Jato: “A ditadura do judiciário foi tão ruim quanto a outra”.

Neste ano, Cassiano lançou seu terceiro livro, reunindo 50 anos de reportagens. A edição estava pronta para ser lançada em 2020, mas acabou ficando num galpão devido à pandemia. Neste período, o mestre enfrentou um câncer e contou o apoio da Liga Contra o Câncer. Passadas as duas lutas, Cassiano doou os 1.300 exemplares para a Liga, que foram lançados em evento concorrido no mês de março.

A hora avança sem sinais, o mestre começa a preparar o fim da aula.

“Aprendi a desconfiar de tudo”, diz, justificando porque não publica releases de assessorias de imprensa que não lhe interessem e nunca sem antes ir atrás de saber da história direito. “Não vou entregar minha credibilidade a um fulano porque ele recebe um troco de alguém.”

Aos 80 anos, o mestre segue ativo e rigoroso no trabalho. “É uma atitude de vida”, diz. E a conversa, para desgosto do aluno, terá que acabar. “Tenho compromisso de fechar jornal. Tenho que buscar notícias.”

Saio da sala de aula cheio de sonhos malucos na cabeça. Coisa de quem se ilude estar à altura dos mestres. Dali a 20 minutos, Cassiano Arruda Câmara entrará ao vivo na rádio, com sua voz já marcada mas de um timbre genuinamente cativante. Corri pra casa ouvir a transmissão pela internet mesmo. O que será que tiraria da cartola em menos de 20 minutos, já que lhe tomei toda a manhã?




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