Quem vai aproveitar o caminho nacional?

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Professor e psicanalista, doutor em Ciências Sociais. Examina a política internacional e suas implicações para a economia, a cultura e as relações de poder

Alguns atos recentes da vida política nacional podem indicar situações indigestas para a esquerda nos próximos tempos, especialmente no cenário eleitoral. Na segunda-feira passada (2), Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central, manifestou novamente uma preocupação com o crescimento econômico persistente, com todas aquelas frases que não dizem nada: “Hoje em dia, fazer cenários é muito difícil”, “(o momento) demanda cautela e flexibilidade”, “estamos no momento de repetição da palavra ‘incerteza’”. Esse conjunto de sentenças ocas vem para justificar o de sempre: a economia precisa ser desacelerada, e, portanto, será preciso seguir aumentando a taxa de juros.

Um dia antes, contudo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) publicou um vídeo intitulado Ainda Há Esperança, que ligou um sinal de atenção em diversos segmentos. Ali, ele enaltecia os construtores da nação, do Império a JK, da República Velha ao período militar, passando pelo resgate de Getúlio Vargas e até de João Goulart, apresentado como alguém cujas propostas “nasciam da intenção de dar respostas a anseios populares”. No conjunto, reconhecia o desenvolvimentismo como motor da nação e reforçava a necessidade do país de reencontrar aquele caminho. Trata-se de uma mudança de rumos na tática política bolsonarista? Talvez alguma sinalização política para segmentos que estão hoje fora desse polo de direita? Ou apenas um discurso pronto, pré-fabricado, sem profundidade reflexiva, feito apenas para apresentá-lo como potencial candidato a qualquer coisa diferente do Parlamento em 2026?

Independentemente da resposta, a indigestão de que falei antes, e que a esquerda pode sentir, não ocorre por acaso, e vem, em parte, por seus próprios atos. Ainda que o Partido dos Trabalhadores critique em seus documentos a política persistente de aumento nos juros (hoje o principal entrave de ordem operacional para o desenvolvimento do país e vetor de transferência de renda do povo para bancos, especuladores e outros usurpadores do Tesouro Público), não há nenhuma pressão maior feita pelo partido ou por movimentos sociais organizados que exija mudanças nessa linha. O entendimento de que não é o governo que determina o rumo dos juros apenas reforça a obediência do PT ao paradigma neoliberal, que preconiza a autonomia do Banco Central e dos demais órgãos de Estado.

Eduardo Bolsonaro vai noutra direção. Ao fazer esse resgate histórico da fase imperial e dos momentos mais dinâmicos da economia brasileira no século XX, e destacar que o Brasil precisa reencontrar “o verdadeiro espírito brasileiro”, ele se coloca à margem do neoliberalismo, que foi justamente o receituário que, nas últimas décadas, tirou o Brasil dos trilhos do crescimento econômico, dos grandes investimentos públicos, dos planos de desenvolvimento, e restringiu a política às tretas do dia a dia, com um Executivo acuado, presidentes com baixo exercício de sua autoridade democrática, e o vácuo de poder sendo coberto por um Legislativo fisiológico e um Judiciário que age como corporação de ofício medieval.

Pode não parecer, mas há um diálogo aqui, e nesse diálogo, quem se posiciona a favor do povo e do interesse nacional não é a esquerda. É claro que isso não ocorre somente no Brasil: nos Estados Unidos e na Europa tem sido comum uma reorientação do voto popular à direita, enquanto a esquerda preconiza a defesa de instituições falidas e de receituários que mantêm países em crises econômicas e em modelos de governança que não respondem mais aos anseios do povo.

O que também se percebe no diálogo é que, ironicamente, quem manifesta um tom conciliador é o Eduardo Bolsonaro. Só que ele não sugere uma reconciliação entre os dois polos da política atual; sugere uma reconciliação entre o presente e o passado. Afirma que os desafios da atualidade devem ser compreendidos como mais um por um povo que já passou por tantas lá atrás. Não se pode negar a pertinência desse discurso. O PT, em geral, nunca lidou bem com a história do país. Lula, que sempre teve reservas às heranças do getulismo, adorava soltar a frase “nunca antes na história desse país” (que não tem dito muito ultimamente…), como se para dizer que, na visão de seu campo, o Brasil só começou em 2003 — tudo o que veio antes era apenas uma espécie de pré-história.

Ora, isso tudo não é pouca coisa, pois falamos de alguém que sempre fez questão de se colocar no campo da extrema direita (Eduardo Bolsonaro gostava de posar com estampa do coronel Brilhante Ustra, já fez acenos positivos aos Estados Confederados da América, que defendiam a escravidão, etc), e quando esse sujeito começa a dizer coisas que deveriam ser parte dos discursos do campo progressista, temos o que Hegel chamaria de astúcia da razão — a história se move, mas por canais perversos. É por isso que a fala do Eduardo parece menos uma guinada ideológica e mais uma falha espectral do sistema. Ele (ainda) não convence nessa estética nacionalista. Mas pode tentar se esforçar.

Por seu turno, agindo como um ignorante a respeito do passado brasileiro, o Galípolo disse que a economia brasileira mostra uma “resiliência surpreendente” por continuar crescendo mesmo com os juros estratosféricos. Será que ele sabe que, por mais de meio século, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo? Indicado pelo PT, seu único esforço hoje é o de desaquecer a economia, enquanto Eduardo Bolsonaro, em seu vídeo, defende aqueles que a impulsionaram. O discurso do Banco Central é de defesa da estabilidade, da contração, da cautela, enquanto o deputado do PL vem realçar o papel dos que deram o tom do desenvolvimento, dos investimentos públicos, da ampliação da infraestrutura, etc. Chega a ser constrangedora a diferença de perspectivas entre ambos os lados, porque mostra como o PT, mesmo tendo vencido cinco das últimas seis eleições, parece ter um fetiche pela impotência estratégica, negando-se a qualquer disputa de narrativa, deixando o terreno livre para o campo adversário aproveitá-lo (seja com intenções positivas ou negativas).

É claro, sempre há a possibilidade de o discurso de Eduardo Bolsonaro ter pouco eco, de não passar de bravata ou de ser uma espécie de aceno a uma parcela represada da vida pública, dividida entre nichos minúsculos de uma ultradireita nacionalista (incluindo grupos supremacistas, neofascistas, etc.) e uma parcela mais representativa do eleitorado nacionalista de esquerda — que esteve com Ciro em 2018, sem conseguir sustentar a força em 2022. Caso o Ciro abandone mesmo as pretensões eleitorais (e eu espero que não), esse apelo nacionalista ficará em aberto, pedindo para ser explorado, seja pela direita ou pela esquerda. O autoexilado Bolsonaro pode ter percebido isso. E mesmo que seja apenas um aceno, pode atrair alas que hoje estão sub-representadas.

E um último fator que não se pode esquecer sobre Bolsonaro Eduardo é que ele é diferente do Bolsonaro Jair. Este sempre foi um sujeito desarticulado, ignorante, tosco. O filho é muito mais antenado, acompanha melhor o que acontece lá fora e, no fundo, foi o grande artífice da construção do pai como uma alternativa para a direita antes de 2018, construindo as pontes com o grupo ligado a Donald Trump. Agora pode estar disposto a dar um salto qualitativo no programa precário apresentado pelo Jair e ele próprio protagonizar o cenário, propondo um caminho nacional que o bolsonarismo até aqui não defendia. Se tudo não passar de artifício para atrair nacionalistas órfãos, o tiro pode sair pela culatra, pois pode afastar liberais que estão abrigados sob o guarda-chuva entreguista do bolsonarismo.

Para se precaver, a resposta que o PT poderia dar a isso tem nome e números: resultados na economia. Aquilo que se chamava de “agenda positiva” e que parece inexistente no governo atual, que ainda professa o neoliberalismo como novidade. Lula, que anda por aí elogiando Margaret Thatcher e Ronald Reagan, claramente não está disposto a dar um giro em sua política econômica nesses últimos dezoito meses. Vai ser difícil para a esquerda defender a continuidade do projeto em curso. Mas muita coisa ainda vai acontecer nesse período. Como dizia Gramsci, “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”, e é justamente aí que a bagunça acontece.



Quem vai aproveitar o caminho nacional?

Professor e psicanalista, doutor em Ciências Sociais. Examina a política internacional e suas implicações para a economia, a cultura e as relações de poder

Alguns atos recentes da vida política nacional podem indicar situações indigestas para a esquerda nos próximos tempos, especialmente no cenário eleitoral. Na segunda-feira passada (2), Gabriel Galípolo, presidente do Banco Central, manifestou novamente uma preocupação com o crescimento econômico persistente, com todas aquelas frases que não dizem nada: “Hoje em dia, fazer cenários é muito difícil”, “(o momento) demanda cautela e flexibilidade”, “estamos no momento de repetição da palavra ‘incerteza’”. Esse conjunto de sentenças ocas vem para justificar o de sempre: a economia precisa ser desacelerada, e, portanto, será preciso seguir aumentando a taxa de juros.

Um dia antes, contudo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL) publicou um vídeo intitulado Ainda Há Esperança, que ligou um sinal de atenção em diversos segmentos. Ali, ele enaltecia os construtores da nação, do Império a JK, da República Velha ao período militar, passando pelo resgate de Getúlio Vargas e até de João Goulart, apresentado como alguém cujas propostas “nasciam da intenção de dar respostas a anseios populares”. No conjunto, reconhecia o desenvolvimentismo como motor da nação e reforçava a necessidade do país de reencontrar aquele caminho. Trata-se de uma mudança de rumos na tática política bolsonarista? Talvez alguma sinalização política para segmentos que estão hoje fora desse polo de direita? Ou apenas um discurso pronto, pré-fabricado, sem profundidade reflexiva, feito apenas para apresentá-lo como potencial candidato a qualquer coisa diferente do Parlamento em 2026?

Independentemente da resposta, a indigestão de que falei antes, e que a esquerda pode sentir, não ocorre por acaso, e vem, em parte, por seus próprios atos. Ainda que o Partido dos Trabalhadores critique em seus documentos a política persistente de aumento nos juros (hoje o principal entrave de ordem operacional para o desenvolvimento do país e vetor de transferência de renda do povo para bancos, especuladores e outros usurpadores do Tesouro Público), não há nenhuma pressão maior feita pelo partido ou por movimentos sociais organizados que exija mudanças nessa linha. O entendimento de que não é o governo que determina o rumo dos juros apenas reforça a obediência do PT ao paradigma neoliberal, que preconiza a autonomia do Banco Central e dos demais órgãos de Estado.

Eduardo Bolsonaro vai noutra direção. Ao fazer esse resgate histórico da fase imperial e dos momentos mais dinâmicos da economia brasileira no século XX, e destacar que o Brasil precisa reencontrar “o verdadeiro espírito brasileiro”, ele se coloca à margem do neoliberalismo, que foi justamente o receituário que, nas últimas décadas, tirou o Brasil dos trilhos do crescimento econômico, dos grandes investimentos públicos, dos planos de desenvolvimento, e restringiu a política às tretas do dia a dia, com um Executivo acuado, presidentes com baixo exercício de sua autoridade democrática, e o vácuo de poder sendo coberto por um Legislativo fisiológico e um Judiciário que age como corporação de ofício medieval.

Pode não parecer, mas há um diálogo aqui, e nesse diálogo, quem se posiciona a favor do povo e do interesse nacional não é a esquerda. É claro que isso não ocorre somente no Brasil: nos Estados Unidos e na Europa tem sido comum uma reorientação do voto popular à direita, enquanto a esquerda preconiza a defesa de instituições falidas e de receituários que mantêm países em crises econômicas e em modelos de governança que não respondem mais aos anseios do povo.

O que também se percebe no diálogo é que, ironicamente, quem manifesta um tom conciliador é o Eduardo Bolsonaro. Só que ele não sugere uma reconciliação entre os dois polos da política atual; sugere uma reconciliação entre o presente e o passado. Afirma que os desafios da atualidade devem ser compreendidos como mais um por um povo que já passou por tantas lá atrás. Não se pode negar a pertinência desse discurso. O PT, em geral, nunca lidou bem com a história do país. Lula, que sempre teve reservas às heranças do getulismo, adorava soltar a frase “nunca antes na história desse país” (que não tem dito muito ultimamente…), como se para dizer que, na visão de seu campo, o Brasil só começou em 2003 — tudo o que veio antes era apenas uma espécie de pré-história.

Ora, isso tudo não é pouca coisa, pois falamos de alguém que sempre fez questão de se colocar no campo da extrema direita (Eduardo Bolsonaro gostava de posar com estampa do coronel Brilhante Ustra, já fez acenos positivos aos Estados Confederados da América, que defendiam a escravidão, etc), e quando esse sujeito começa a dizer coisas que deveriam ser parte dos discursos do campo progressista, temos o que Hegel chamaria de astúcia da razão — a história se move, mas por canais perversos. É por isso que a fala do Eduardo parece menos uma guinada ideológica e mais uma falha espectral do sistema. Ele (ainda) não convence nessa estética nacionalista. Mas pode tentar se esforçar.

Por seu turno, agindo como um ignorante a respeito do passado brasileiro, o Galípolo disse que a economia brasileira mostra uma “resiliência surpreendente” por continuar crescendo mesmo com os juros estratosféricos. Será que ele sabe que, por mais de meio século, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo? Indicado pelo PT, seu único esforço hoje é o de desaquecer a economia, enquanto Eduardo Bolsonaro, em seu vídeo, defende aqueles que a impulsionaram. O discurso do Banco Central é de defesa da estabilidade, da contração, da cautela, enquanto o deputado do PL vem realçar o papel dos que deram o tom do desenvolvimento, dos investimentos públicos, da ampliação da infraestrutura, etc. Chega a ser constrangedora a diferença de perspectivas entre ambos os lados, porque mostra como o PT, mesmo tendo vencido cinco das últimas seis eleições, parece ter um fetiche pela impotência estratégica, negando-se a qualquer disputa de narrativa, deixando o terreno livre para o campo adversário aproveitá-lo (seja com intenções positivas ou negativas).

É claro, sempre há a possibilidade de o discurso de Eduardo Bolsonaro ter pouco eco, de não passar de bravata ou de ser uma espécie de aceno a uma parcela represada da vida pública, dividida entre nichos minúsculos de uma ultradireita nacionalista (incluindo grupos supremacistas, neofascistas, etc.) e uma parcela mais representativa do eleitorado nacionalista de esquerda — que esteve com Ciro em 2018, sem conseguir sustentar a força em 2022. Caso o Ciro abandone mesmo as pretensões eleitorais (e eu espero que não), esse apelo nacionalista ficará em aberto, pedindo para ser explorado, seja pela direita ou pela esquerda. O autoexilado Bolsonaro pode ter percebido isso. E mesmo que seja apenas um aceno, pode atrair alas que hoje estão sub-representadas.

E um último fator que não se pode esquecer sobre Bolsonaro Eduardo é que ele é diferente do Bolsonaro Jair. Este sempre foi um sujeito desarticulado, ignorante, tosco. O filho é muito mais antenado, acompanha melhor o que acontece lá fora e, no fundo, foi o grande artífice da construção do pai como uma alternativa para a direita antes de 2018, construindo as pontes com o grupo ligado a Donald Trump. Agora pode estar disposto a dar um salto qualitativo no programa precário apresentado pelo Jair e ele próprio protagonizar o cenário, propondo um caminho nacional que o bolsonarismo até aqui não defendia. Se tudo não passar de artifício para atrair nacionalistas órfãos, o tiro pode sair pela culatra, pois pode afastar liberais que estão abrigados sob o guarda-chuva entreguista do bolsonarismo.

Para se precaver, a resposta que o PT poderia dar a isso tem nome e números: resultados na economia. Aquilo que se chamava de “agenda positiva” e que parece inexistente no governo atual, que ainda professa o neoliberalismo como novidade. Lula, que anda por aí elogiando Margaret Thatcher e Ronald Reagan, claramente não está disposto a dar um giro em sua política econômica nesses últimos dezoito meses. Vai ser difícil para a esquerda defender a continuidade do projeto em curso. Mas muita coisa ainda vai acontecer nesse período. Como dizia Gramsci, “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”, e é justamente aí que a bagunça acontece.


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