No dia 15 de abril, o Sudão completou dois anos de guerra civil. O marco, longe de simbolizar qualquer avanço rumo à paz, expõe o esgotamento de um país que parece ter esvaziado o próprio sentido de soberania. A guerra começou em 2023, quando o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido (RSF) se voltaram um contra o outro — duas cabeças da mesma criatura criada pelo antigo ditador Omar al-Bashir.
No início do conflito, as RSF tomaram a capital, Cartum, invadindo inclusive o Palácio Presidencial — edifício que, desde sua construção em 1825, simboliza a sede do poder e do saque. O palácio foi turco-egípcio, depois britânico, depois “republicano”, “do povo”, e finalmente o palácio dourado de Bashir, erguido com dinheiro chinês. Cada regime o herdou com a mesma obsessão: o controle sobre o centro, sustentado pela exploração das periferias.
Em março de 2025, o exército sudanês anunciou ter reconquistado o palácio. Soldados posaram diante das paredes cravejadas de balas, proclamando vitória. Mas o prédio — como a soberania — estava vazio. O país se desfez em guerras locais, em alianças de ocasião, em ruínas. A luta pelo palácio, no fundo, acendeu uma centena de outros conflitos.
Uma guerra sem centro
O exército e as RSF nasceram do mesmo ventre político: o sistema de poder fragmentado de Bashir, que multiplicou serviços de segurança e milícias para evitar golpes e garantir seu domínio. Quando o ditador caiu, em 2019, o Sudão até tentou ensaiar uma transição civil, mas os generais voltaram ao palco. Abdul Fattah al-Burhan, chefe das Forças Armadas, e Mohamed Hamdan Daglo, o Hemedti, líder da RSF, uniram forças para derrubar os civis e depois se enfrentaram pelo trono.
O que começou como uma disputa entre duas instituições militares virou um mosaico de guerras regionais. A RSF expandiu-se como uma franquia da violência: oferecia armas, licença para saquear e a promessa de poder a quem se juntasse à luta. Em Darfur e Kordofan, milícias locais se alinharam a Hemedti, transformando rivalidades antigas por terra e recursos em conflitos existenciais.
Os Emirados Árabes Unidos, interessados no ouro e nas terras férteis do Sudão, financiaram as RSF. O exército contou com o apoio do Egito, do Catar e da Turquia. A guerra se internacionalizou, sem nunca deixar de ser local.
O império miliciano
Hemedti — ex-contrabandista de camelos e dono de loja de móveis — tornou-se o general improvável de uma guerra pós-estatal. Sua milícia é uma federação de forças árabes de Darfur, disciplinadas apenas pela lógica do saque. Cada cidade conquistada repete o mesmo ritual: destruição das instituições, pilhagem, violência sexual.
A RSF chama isso de “derrubar o Estado de 1956”, ano da independência. Na retórica dos combatentes, trata-se de devolver a Darfur o que o centro lhe roubou. Na prática, a guerra transformou todo o país numa periferia. As cidades de Darfur, como Nyala e Zalingei, também foram saqueadas. A promessa de revolta contra o centro converteu-se em nova forma de espoliação.
O exército, por sua vez, aprendeu com Bashir: terceirizou os combates a milícias islamistas, recuperando o velho bloco político da ditadura. A vitória militar custou caro. Ao distribuir armas e autonomia, Burhan fragmentou ainda mais o poder. “Agora a primeira pergunta que fazemos a um estranho é de qual aldeia ele é”, disse um morador de Al Jazira.
Um país em pedaços
Os números da catástrofe parecem pertencer a outra era: mais de 150 mil mortos, 13 milhões de deslocados, dois terços da população em necessidade humanitária. Em Cartum, a capital, o sistema de saúde colapsou. A cidade, dizem, virou um cemitério.
A fome avança em Darfur e Kordofan, enquanto a ajuda internacional se retrai. As “salas de resposta a emergências”, criadas por ativistas locais, fecharam por falta de recursos. As Nações Unidas reconhecem o exército como governo legítimo, mas a legitimidade é apenas nominal. Cada lado governa sobre ruínas e cadáveres.
Em meio às derrotas, as RSF tentaram reconfigurar a narrativa. Em fevereiro, realizaram uma conferência em Nairóbi, financiada pelos Emirados Árabes, que resultou na proclamação de um “Governo de Paz e Unidade”. A ironia não escapou a ninguém: no mesmo dia, suas forças destruíam o campo de deslocados de Zamzam, matando centenas.
A economia do colapso
No Sudão, a guerra não é o oposto da economia — é a própria economia. O ouro e o gado, principais produtos de exportação, continuam a fluir para os Emirados Árabes, que compram tanto dos paramilitares quanto do exército. Os inimigos se enfrentam nos campos de batalha e se encontram nos portos e nas contas bancárias.
A destruição das terras agrícolas e o deslocamento de milhões de pessoas criaram o tipo de capitalismo-enclave que floresce em zonas de guerra: elites locais armadas e conectadas a investidores estrangeiros, produzindo riqueza em meio ao colapso.
Um novo século XIX
Os diplomatas falam em cessar-fogo e transição democrática, como se o país ainda existisse. Mas o Sudão parece anunciar o fim da era dos Estados-nação na África Oriental. O colapso da capacidade estatal, a fragmentação étnica e o domínio de forças militares financiadas por potências externas repetem-se no Iêmen, na Somália, na República Centro-Africana.
A lógica da Guerra Fria — dois polos, dois blocos — já não se aplica. O que se ergue no lugar é um regime global de guerra transacional. Os Emirados financiam a RSF, mas também compram ouro do exército. A Turquia vende drones a Burhan, mas negocia com os aliados de Hemedti. Cada país age como uma corporação em busca de dividendos. É o que diz, sobre o conflito, Joshua Craze, professor da Universidade de Chicago, que há mais de uma década estuda o Sudão:
Se existe um Regime de Guerra Global emergente, ele não terá dois polos, como durante a Guerra Fria, mas múltiplas coordenadas. No Sudão, os Emirados Árabes Unidos financiam as RSF, mas também compram ouro do exército e apoiam alguns dos islamistas alinhados com ele. A Turquia pode estar vendendo drones para Burhan, mas Ancara também recebeu recentemente uma visita oficial de Saddam Haftar, filho do general que controla o leste da Líbia, que canaliza armas e combustível para as RSF. Não há nenhuma lógica geopolítica de alinhamento em ação aqui: cada país funciona como uma sociedade por ações, obtendo seus lucros onde pode, mesmo que as consequências sejam politicamente incoerentes.
Joshua Craze
Enquanto isso, as forças que poderiam representar uma saída — os comitês de resistência, herdeiros da revolta que derrubou Bashir — são perseguidas por ambos os lados. Alguns militantes pegaram em armas, outros tentam manter viva uma rede precária de ajuda mútua.
Eles são o último vestígio de um país que insiste em sobreviver — não o Estado, mas o laço entre pessoas. No entanto, como tudo no Sudão, esse fio também é frágil.
Do palácio em ruínas de Cartum ao campo devastado de Zamzam, o que resta é um retrato brutal de um mundo em que a guerra é mais rentável que a paz, e a soberania não passa de uma ficção que o vento já levou.






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