Mensagens vazadas revelam que Alexandre de Moraes tem “mania” por críticos de sua atuação no STF e que não se constrange ao usar das prerrogativas do cargo de ministro para perseguir adversários; “ele está com tempo para ficar procurando”, disse seu assessor
Triste do país que precisa escolher entre Bolsonaro e Alexandre de Moraes. Fugindo a esta dupla chantagem, é preciso pôr as coisas em seu lugar e ter perspectiva histórica. Os crimes que são imputados a Jair Bolsonaro e muitos de seus aliados foram exaustivamente divulgados pela imprensa, que assim cumpriu seu papel de fiscalizar o poder a serviço do cidadão.
O que surge com ainda maior clareza diante de nós, agora, é a outra face da moeda. O vazamento das conversas entre assessores diretos do ministro do STF Alexandre de Moraes revelam que a democracia é atacada pelos dois flancos: o do bolsonarismo e o de seus opositores.
A pretexto da defesa da democracia, Alexandre de Moraes tem sido investido de poderes cada vez mais incompatíveis com um regime democrático. Investigações direcionadas e predileção por determinados alvos. Penas e sanções desproporcionais. Censura e boicote à renda de veículos da imprensa e ativistas da comunicação. Ah, mas são bolsonaristas, golpistas, dirão. O fato é que – se quisermos realmente preservar a democracia – precisamos aceitar que a lei vale para todos, até mesmo para aqueles com quem somos incapazes de ao menos conversar.
Bolsonarista ou não, o livre exercício da opinião e do direito à crítica é indispensável para uma democracia de fato. E é a democracia real que, pelas mãos dos que dizem defendê-la, está ameaçada. Alexandre de Moraes é o principal exemplo desta escalada autoritária, como veremos.
Do combate às fake news à censura, a saga de Xandão
No caso de Alexandre de Moraes, muito tem se falado sobre o respeito (ou a falta dele) aos ritos legais que deveriam reger a ação da Justiça. Embora seja um tema importante e revelador do que acontece em nosso país, nem de longe é o fato mais importante revelado pelo vazamento das mensagens entre assessores do ministro do STF, nas quais orquestram a produção de provas contra agentes bolsonaristas.
O teor das conversas torna patente que a ação de Alexandre de Moraes tem sido politicamente orientada a determinados fins. Tais fins podem até incluir, em certos momentos, a preservação das instituições democráticas. Mas – no mar sem fim dos poderes atribuídos a Moraes – abriram-se também as portas para a censura e a perseguição política.
O inquérito das fake news, instaurado de ofício em março de 2019 pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, foi criado para investigar “notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças e infrações” contra a Corte. Relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, o inquérito se tornou um verdadeiro vale-tudo, do qual emanam os poderes extraordinários que hoje se concentram nas mãos de Moraes.
Desde o início, o inquérito não seguiu os trâmites habituais: Alexandre de Moraes foi designado relator sem passar por sorteio, o que gerou críticas por parte de juristas e parlamentares. Sob sua condução, várias figuras públicas e influenciadores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro foram alvo de investigações e medidas restritivas. Muitas vezes com punições desproporcionais e sem respeitar o devido direito de defesa.
Entre os investigados estão o blogueiro Paulo Figueiredo Filho e o comentarista Rodrigo Constantino, cujas publicações nas redes sociais, criticando a atuação da Justiça durante as eleições de 2022, serviram de base para Moraes determinar a quebra de sigilo bancário, o bloqueio de perfis na internet e o cancelamento dos passaportes de ambos.
Apesar de o processo tramitar em sigilo, o principal alvo do inquérito é o ex-presidente Jair Bolsonaro, incluído na investigação em agosto de 2021 após uma transmissão ao vivo em que atacou o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas. Antes disso, em fevereiro do mesmo ano, o então deputado federal Daniel Silveira foi preso em flagrante após divulgar um vídeo com insultos e ameaças aos ministros do STF.
Em maio de 2020, Moraes ordenou uma grande operação que incluiu 29 mandados de busca e apreensão contra blogueiros, ativistas e empresários, como Allan dos Santos, Sara Winter, Luciano Hang e Roberto Jefferson. A ação visava desarticular o chamado “gabinete do ódio”, supostamente criado para disseminar fake news e promover ataques contra as instituições democráticas.
Mais recentemente, o Partido da Causa Operária (PCO) também se tornou alvo de decisões de Moraes. Em junho de 2022, o ministro ordenou o bloqueio dos perfis do partido em diversas redes sociais após publicações que defendiam a dissolução do STF e chamavam Moares de “skinhead de toga” com “sanha por ditadura”.
O gabinete de Moraes justificou que as solicitações de informações ao TSE eram práticas normais dentro do escopo de investigações existentes, e o próprio ministro afirmou que todos os procedimentos respeitaram a integridade legal. O caso, no entanto, reacendeu debates sobre a atuação de Moraes como relator dos processos sobre fake news, milícias digitais e os atos de 8 de janeiro de 2023.
Desde que assumiu o posto no STF, Moraes acumulou poderes significativos como relator de investigações que se originaram do inquérito das fake news – hoje já são várias investigações sob o mesmo arcabouço. Todas elas nas mãos de um único homem, Alexandre de Moraes.
“Quando ele cisma é uma tragédia”
As conversas entre o juiz instrutor Airton Vieira (principal assessor de Alexandre de Moraes no STF) e Eduardo Tagliaferro (então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE) contém trechos onde os próprios envolvidos declaram o receio de que os pedidos informais pudessem vir a público. “Formalmente, se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada”, afirmou Vieira. Ele ressaltou que, caso essa atuação fosse exposta, “ficaria chato”. Eles sabiam que faziam algo errado.
De acordo com as mensagens, o setor de combate à desinformação do TSE, durante a presidência de Moraes, foi transformado em um braço investigativo do gabinete do ministro no STF. Vieira e Tagliaferro trocavam frequentemente solicitações e relatórios para embasar medidas judiciais, como bloqueio de contas em redes sociais e multas, muitas vezes relacionadas a publicações críticas à lisura do processo eleitoral ou apenas críticas diretas a Alexandre de Moraes.
As conversas costumavam ocorrer pela madrugada.
Em um dos áudios, Vieira sugere que, para evitar exposições, os relatórios passassem a ser formalmente atribuídos ao TSE, com o timbre do tribunal e sob o comando de um juiz auxiliar do TSE. “Para todos os fins, fica de ordem dele, do dr. Marco [Antônio Martins Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE], que ele manda enviar pra gente [no STF] e aí tudo bem”, comentou Vieira.
O receio expresso nas mensagens também se refletiu na tentativa de ocultar a origem dos relatórios. Vieira sugeriu a alteração do timbre nos documentos de “Supremo Tribunal Federal” para “Tribunal Superior Eleitoral”, o que teria sido debatido com Cristina Yukiko Kusahara Gomes, chefe de gabinete de Moraes no STF.
Em nota, após a publicação das reportagens, o gabinete de Moraes afirmou que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”. Tagliaferro, por sua vez, declarou que cumpria todas as ordens recebidas e não se recorda de ter cometido qualquer ilegalidade.
Os áudios expõem a linha tênue entre as funções do STF e do TSE e levantam dúvidas sobre a legalidade e transparência na condução de inquéritos que têm como alvo figuras públicas e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. O episódio expõe o delicado equilíbrio entre o combate à desinformação e a preservação de garantias constitucionais.