O continente africano deixou de ser apenas um ponto de passagem para o tráfico internacional de drogas e passou a ocupar um papel estratégico nas operações dos cartéis latino-americanos. Em matéria para o site Geopolitica.Info, Martina Battaiotto apontou que, de acordo com relatórios recentes da DEA (Drug Enforcement Administration) e de comandos militares dos Estados Unidos, organizações como o Cartel de Sinaloa e o Cartel Jalisco Nueva Generación (CJNG) estão transformando países africanos em centros de produção, refino e exportação de cocaína e outras drogas sintéticas — um movimento que amplia o alcance global dessas redes criminosas e aprofunda as fragilidades políticas e institucionais do continente.
De rota de passagem a base de operações
Nos anos 1990, a África era vista pelos cartéis como uma rota alternativa para o escoamento da cocaína latino-americana em direção à Europa. O aumento da demanda europeia e a intensificação da vigilância em rotas tradicionais — como Panamá e Caribe — levaram os traficantes a buscar novos caminhos. A fragilidade de muitos Estados africanos, marcada por corrupção, fronteiras extensas e conflitos étnicos, favoreceu a escolha.
Redes locais de contrabando já existentes, em especial no Sahel, permitiram que os cartéis se infiltrassem com relativa facilidade. A partir daí, o Cartel de Sinaloa consolidou presença em países como Nigéria, Gana, Mali e Senegal, enquanto o CJNG passou a atuar em áreas da África Ocidental e Central desde 2017.
Alianças com grupos armados e governos locais
A expansão dos cartéis só foi possível por meio de alianças estratégicas com atores locais — incluindo grupos étnicos, milícias e facções jihadistas. Em troca de proteção e passagem segura, essas organizações recebem parte dos lucros do tráfico.
Um caso emblemático é o da Guiné-Bissau, muitas vezes chamada de “narcoestado” pela conivência entre autoridades e narcotraficantes. No Mali, grupos tuaregues controlam rotas terrestres vitais e cobram taxas de passagem. Já no Sahel, o Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQIM) e o Estado Islâmico na Província da África Ocidental (ISWAP) participam diretamente do transporte de cocaína destinada à Europa e ao Oriente Médio.
A nova etapa: laboratórios africanos
Segundo o vice-comandante do AFRICOM, John W. Brennan, o continente está agora na “fase da industrialização” do tráfico. Laboratórios de produção de drogas, antes concentrados na América Latina, estão sendo realocados para a África, especialmente em países da região ocidental e austral.
Relatórios da DEA apontam a presença de técnicos mexicanos no continente. Em Moçambique, dois cidadãos do México foram presos em 2023, enviados pelo Cartel de Sinaloa para “transferir conhecimento técnico” e otimizar a produção local. Casos semelhantes ocorreram no Quênia, onde agentes antidrogas prenderam membros do CJNG, e na África do Sul, onde cinco mexicanos foram detidos em setembro de 2024.
O resultado é um aumento expressivo da produção e do consumo interno. Segundo o Relatório Global sobre Cocaína 2023, as apreensões na África cresceram 85% desde 2019. A queda nos preços e o aumento das internações hospitalares por uso de cocaína em países como Moçambique e África do Sul indicam que o consumo já não é apenas um fenômeno de trânsito, mas também de mercado interno.
Riscos para a Europa e o Brasil
A transformação da África em polo de produção tem repercussões diretas na segurança europeia. As novas rotas reduzem custos logísticos e ampliam o alcance das redes criminosas. Para a Europa, especialmente países mediterrâneos como a Itália, isso representa uma ameaça estratégica.
Projetos de cooperação, como o Plano Mattei, que envolve investimentos italianos em países africanos — entre eles Moçambique e Quênia —, podem ser afetados pela crescente presença de cartéis. O risco é que a infiltração dessas organizações em estruturas políticas e econômicas locais mine a confiança de investidores e parceiros internacionais.
Cooperação internacional e desafios
Tanto a União Europeia quanto os Estados Unidos ampliaram a cooperação com governos africanos para enfrentar o avanço do narcotráfico. A DEA mantém sete investigações abertas em quatro jurisdições africanas e atua com Unidades Locais de Investigação Sensível (SIU) para conter a expansão das redes latino-americanas.
Entretanto, a eficácia dessas operações depende da estabilidade política e da capacidade institucional dos países envolvidos — algo ainda precário em boa parte do continente. A crescente associação entre cartéis e grupos armados locais reforça o caráter híbrido da ameaça: uma mistura de crime organizado, terrorismo e captura do Estado.
Se nas décadas passadas a África era apenas um elo logístico no caminho da cocaína latino-americana, agora se consolida como um ponto central de um novo mapa global do narcotráfico — com impactos que vão muito além do continente. O continente africano, antes visto como rota periférica, tornou-se peça-chave em uma engrenagem transnacional que desafia fronteiras, governos e a própria ordem global.






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