Do espetáculo ao gesto impossível

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Uma resposta para “Do espetáculo ao gesto impossível”

  1. Avatar de Cláudio Wagner
    Cláudio Wagner

    Belíssimo texto e ótimos reflexões

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Professor e psicanalista, doutor em Ciências Sociais.

Examina a política internacional e suas implicações

para a economia, a cultura e as relações de poder.

Mark Fisher tem um livro cujo subtítulo vem na forma de pergunta: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Explorando pontualmente o cinema como um exemplo de como o apocalipse tem um apelo forte em nossos tempos, a resposta desde o princípio caminha na direção de um “sim” bastante ruidoso. Só que agora há um elemento adicional: o espetáculo da tragédia, que nas últimas duas décadas vem sendo explorada até o limite com filmes que vão de mortos-vivos destruindo tudo a catástrofes de dimensões extraplanetárias (não posso deixar de recordar a série Into the Night, na qual o simples fato de o Sol nascer leva à morte de tudo que é orgânico, de frutas a pessoas), ganhou um fator adicional: a vida real tá cada vez mais incluindo esse tempero trágico no seu cotidiano.

O conflito entre Israel e Irã, iniciado há alguns dias, parece ser uma demonstração bem eloquente de como esse espetáculo da tragédia está em alta. Mais do que a guerra entre russos e ucranianos (talvez porque neste caso a assimetria é maior), a troca de bombardeios entre israelenses e iranianos tem sido acompanhada ao vivo pelo mundo todo. Se desde a Guerra do Golfo, os conflitos se tornaram televisionados, agora, mais do que em qualquer momento anterior, eles viraram atrações que os próprios indivíduos filmam da janela de seus apartamentos e jogam nas redes.

É claro que esse fascínio tem algo de inconsciente: o prazer sombrio de assistir ao colapso reflete um tipo de gozo que se manifesta na destruição. E aqui a gente retorna à reflexão de Fisher — não havendo alternativas viáveis a um capitalismo que se globalizou até o limite e eliminou todas as possibilidades de sistemas alternativos, a única coisa que resta para o futuro, se não é imaginar o mundo pior do que está (ou seja, ainda mais mercantilizado e precarizado), é imaginar o mundo sequer existindo! Não é um masoquismo banal, mas sim a percepção de que, se a realidade parece intolerável e sem saída, o apocalipse pode ser o único horizonte que lhe dá algum sentido. É daí que podemos concluir que hoje em dia não apenas tememos o fim do mundo; em certa medida, nós o desejamos.

É claro que há um traço cínico nesse comportamento, expresso nas já mencionadas mercadorias que vendem uma experiência de catástrofe global em duas horas, ou em episódios de cinquenta minutos. Enquanto uns se fascinam com o caos, outros vendem ingressos. Com os moradores de Tel Aviv, que convivem com lançadores de mísseis no mesmo quarteirão do condomínio em que moram, já não é mais preciso gastar com streaming para vermos grandes explosões — eles agora estão nos reels do Instagram, dividindo espaço com os vídeos de piadas ruins e os canais motivacionais. O apelo tem sido tão grande que mesmo o Mundial de Clubes da FIFA quase não tem sido assunto.

No que se refere ao conflito propriamente dito, muito já foi falado. Como todos os temas que ganham projeção midiática, rapidamente aparecem especialistas por todos os lados, para todos os gostos, tanto pró-Israel quanto pró-Irã, além dos que pensam que os inimigos deveriam se abraçar e selar a paz num gesto quase espiritual. O que nem sempre se diz é que, nessa discussão sobre quem tem razão, muitas vezes não se levanta o fato de que ambos os lados têm traumas históricos recentes (Israel com o Holocausto e os conflitos pós-1948, Irã com o neocolonialismo durante os séculos XIX e XX, e a persistente desconfiança do Ocidente), que tornam impossível que ignorem o papel do outro nessas tragédias. A possibilidade imediata é o persistente conflito até que um dos lados seja aniquilado como Estado-nação.

Só que pode haver uma outra via, que não é o simples autoengano, como um vedar de olhos, na forma de discurso pacifista. Essa via seria com as partes admitindo essa impossibilidade de solução e cometendo um ato simbólico radical: o reconhecimento de que há um mito comum que pode ser compartilhado. Nesse mito comum, Irã e Israel, como duas grandes forças daquela região, já não precisariam convencer o outro nem forçá-lo a aceitar sua primazia. Eles poderiam se tornar parceiros econômicos, impulsionando projetos comuns (cooperação em dessalinização da água, energia solar, etc). Também não deveriam fingir amizade; podem continuar antagônicos, porém ao invés de se buscar a destruição do inimigo, o elemento a ser almejado seria a administração desse antagonismo. De quebra, deixariam de ser títeres de indústrias (e potências) que lucram com o conflito. 

Utopia? Não é por aí. Já tivemos exemplos parecidos antes. Na Irlanda do Norte, o conflito entre o IRA (Exército Republicano Irlandês) contra o Reino Unido, que durou décadas, só foi reconhecido quando houve gestos dos dois lados: a Rainha pediu desculpas, o IRA abandonou atos de terrorismo para a interlocução política e os investimentos na região aumentaram. E nós mesmos somos protagonistas de algo parecido: Brasil e Argentina, que desde a condição colonial nutriam rivalidades que desembocaram em anos de guerra, e permaneceram sob desconfiança mútua por quase todo o século passado, numa certa altura reconheceram suas diferenças mas agiram em sentido contrário — decidiram cooperar mutuamente e deram o pontapé inicial para a criação do Mercosul, tornando-se os dois principais artífices da (tentativa de) integração sul-americana.

Por que, então, uma semelhante revolução simbólica não poderia se dar no Oriente Médio? Se há coragem para empreendimentos militares suicidas, pode haver coragem para gestos outrora impossíveis. A arte e a cultura poderiam vir fomentar uma nova narrativa comum, contrariando as que vêm sendo hegemônicas até aqui. E é claro, isso exigiria paciência, pois as transformações mentais não se dão por decreto, mas com lentas mudanças na consciência daqueles povos. Pode ser que isso não se dê enquanto o Likud estiver no poder de um lado e o aiatolá do outro, embora fosse justamente pelo ato deles que essa saída talvez surtisse mais efeito. Assim o mundo teria condições de se acostumar com a ideia da paz como solução, e não do apocalipse como alívio para as dores humanas.



Do espetáculo ao gesto impossível

Professor e psicanalista, doutor em Ciências Sociais.

Examina a política internacional e suas implicações

para a economia, a cultura e as relações de poder.

Mark Fisher tem um livro cujo subtítulo vem na forma de pergunta: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? Explorando pontualmente o cinema como um exemplo de como o apocalipse tem um apelo forte em nossos tempos, a resposta desde o princípio caminha na direção de um “sim” bastante ruidoso. Só que agora há um elemento adicional: o espetáculo da tragédia, que nas últimas duas décadas vem sendo explorada até o limite com filmes que vão de mortos-vivos destruindo tudo a catástrofes de dimensões extraplanetárias (não posso deixar de recordar a série Into the Night, na qual o simples fato de o Sol nascer leva à morte de tudo que é orgânico, de frutas a pessoas), ganhou um fator adicional: a vida real tá cada vez mais incluindo esse tempero trágico no seu cotidiano.

O conflito entre Israel e Irã, iniciado há alguns dias, parece ser uma demonstração bem eloquente de como esse espetáculo da tragédia está em alta. Mais do que a guerra entre russos e ucranianos (talvez porque neste caso a assimetria é maior), a troca de bombardeios entre israelenses e iranianos tem sido acompanhada ao vivo pelo mundo todo. Se desde a Guerra do Golfo, os conflitos se tornaram televisionados, agora, mais do que em qualquer momento anterior, eles viraram atrações que os próprios indivíduos filmam da janela de seus apartamentos e jogam nas redes.

É claro que esse fascínio tem algo de inconsciente: o prazer sombrio de assistir ao colapso reflete um tipo de gozo que se manifesta na destruição. E aqui a gente retorna à reflexão de Fisher — não havendo alternativas viáveis a um capitalismo que se globalizou até o limite e eliminou todas as possibilidades de sistemas alternativos, a única coisa que resta para o futuro, se não é imaginar o mundo pior do que está (ou seja, ainda mais mercantilizado e precarizado), é imaginar o mundo sequer existindo! Não é um masoquismo banal, mas sim a percepção de que, se a realidade parece intolerável e sem saída, o apocalipse pode ser o único horizonte que lhe dá algum sentido. É daí que podemos concluir que hoje em dia não apenas tememos o fim do mundo; em certa medida, nós o desejamos.

É claro que há um traço cínico nesse comportamento, expresso nas já mencionadas mercadorias que vendem uma experiência de catástrofe global em duas horas, ou em episódios de cinquenta minutos. Enquanto uns se fascinam com o caos, outros vendem ingressos. Com os moradores de Tel Aviv, que convivem com lançadores de mísseis no mesmo quarteirão do condomínio em que moram, já não é mais preciso gastar com streaming para vermos grandes explosões — eles agora estão nos reels do Instagram, dividindo espaço com os vídeos de piadas ruins e os canais motivacionais. O apelo tem sido tão grande que mesmo o Mundial de Clubes da FIFA quase não tem sido assunto.

No que se refere ao conflito propriamente dito, muito já foi falado. Como todos os temas que ganham projeção midiática, rapidamente aparecem especialistas por todos os lados, para todos os gostos, tanto pró-Israel quanto pró-Irã, além dos que pensam que os inimigos deveriam se abraçar e selar a paz num gesto quase espiritual. O que nem sempre se diz é que, nessa discussão sobre quem tem razão, muitas vezes não se levanta o fato de que ambos os lados têm traumas históricos recentes (Israel com o Holocausto e os conflitos pós-1948, Irã com o neocolonialismo durante os séculos XIX e XX, e a persistente desconfiança do Ocidente), que tornam impossível que ignorem o papel do outro nessas tragédias. A possibilidade imediata é o persistente conflito até que um dos lados seja aniquilado como Estado-nação.

Só que pode haver uma outra via, que não é o simples autoengano, como um vedar de olhos, na forma de discurso pacifista. Essa via seria com as partes admitindo essa impossibilidade de solução e cometendo um ato simbólico radical: o reconhecimento de que há um mito comum que pode ser compartilhado. Nesse mito comum, Irã e Israel, como duas grandes forças daquela região, já não precisariam convencer o outro nem forçá-lo a aceitar sua primazia. Eles poderiam se tornar parceiros econômicos, impulsionando projetos comuns (cooperação em dessalinização da água, energia solar, etc). Também não deveriam fingir amizade; podem continuar antagônicos, porém ao invés de se buscar a destruição do inimigo, o elemento a ser almejado seria a administração desse antagonismo. De quebra, deixariam de ser títeres de indústrias (e potências) que lucram com o conflito. 

Utopia? Não é por aí. Já tivemos exemplos parecidos antes. Na Irlanda do Norte, o conflito entre o IRA (Exército Republicano Irlandês) contra o Reino Unido, que durou décadas, só foi reconhecido quando houve gestos dos dois lados: a Rainha pediu desculpas, o IRA abandonou atos de terrorismo para a interlocução política e os investimentos na região aumentaram. E nós mesmos somos protagonistas de algo parecido: Brasil e Argentina, que desde a condição colonial nutriam rivalidades que desembocaram em anos de guerra, e permaneceram sob desconfiança mútua por quase todo o século passado, numa certa altura reconheceram suas diferenças mas agiram em sentido contrário — decidiram cooperar mutuamente e deram o pontapé inicial para a criação do Mercosul, tornando-se os dois principais artífices da (tentativa de) integração sul-americana.

Por que, então, uma semelhante revolução simbólica não poderia se dar no Oriente Médio? Se há coragem para empreendimentos militares suicidas, pode haver coragem para gestos outrora impossíveis. A arte e a cultura poderiam vir fomentar uma nova narrativa comum, contrariando as que vêm sendo hegemônicas até aqui. E é claro, isso exigiria paciência, pois as transformações mentais não se dão por decreto, mas com lentas mudanças na consciência daqueles povos. Pode ser que isso não se dê enquanto o Likud estiver no poder de um lado e o aiatolá do outro, embora fosse justamente pelo ato deles que essa saída talvez surtisse mais efeito. Assim o mundo teria condições de se acostumar com a ideia da paz como solução, e não do apocalipse como alívio para as dores humanas.

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