Como toda receita que se preze, não poderia deixar de lado esse toque: vai deixando seu forno das emoções pré-aquecido em 200 graus célsius, pois sem a temperatura adequada, é muito possível que a receita desande no final.
Faz dez anos que recebo tratamento médico para uma doença terminal. O engraçado dessa situação é que quando recebi o diagnóstico, duas coisas foram informadas: a primeira, que a doença é raríssima, acometendo um em cada um bilhão de pessoas no planeta, é meio que uma loteria, que ganhei sozinho. Segunda, iria morrer em seis meses, mas já se passaram dez longos anos. Não é nada bom saber que vou morrer, mas todos que estão vivos também vão, então qual o problema? O problema, é que sou eu, e não os outros.
Nos dez anos que faço tratamento, a cada quinze dias tenho que ser internado para umas avaliações médicas e tomar uma grande quantidade de medicamentos que não curam a doença, mas servem de controle paliativo para que ela não me mate mais rápido. Me pergunto se não seria bom já ter terminado com isso. Porém, o tempo vai se passado e sigo vivo, levando minha vida, um dia de cada vez.
Ah! Quanto a essa receita de liberdade, ela não é minha, nem minha doença tem muito a ver com ela. Aliás, minto, até tem a haver um pouco, pois foi em uma das minhas internações, que conheci o Nelson, pessoa que me deu a receita, mas que também não é dele. Achei tão interessante que quero compartilhar.
Assim que vi aquele negro, de uns dois metros de altura, deitado em uma cama do hospital, ao lado da minha, fui tomado de curiosidade para saber qual o motivo dele estar ali. Fiquei a pensar se ele, assim como eu, seria um ganhador da loteria de doenças terminais, mas logo vi que não, assim que ele contou, de uma vez só, toda sua biografia de vida e o motivo que o levara àquele lugar e àquela internação.
Nelson contou-me que cresceu na mais extrema pobreza, passou por todo tipo de privações. Era um dos seis filhos de um casal de moradores da favela “Fundo do Poço”. O pai, era alcoólatra, batia na mãe, abusava da filha menor de idade. Sua mãe era catadora de material reciclável e tinha que trabalhar de sol a sol, todos os dias, para conseguir comprar alguma coisa para os filhos comer e para sustentar o vício do marido. Nelson fugiu de casa aos quatorze anos e nunca mais teve contato com nenhum deles. Sua vida mudou um pouco quando conheceu o projeto “Drive do Amanhã”, que ensina jovens, em situação de rua, a ler, escrever e dirigir, para que tenham a profissão de motorista. Apenas os que tinham boas notas, boa aparência e bons antecedentes criminais, conseguiam, ao final do curso, um emprego em casa de Madame.
Ele falou que nunca entendeu bem os porquês de tanta exigência para ser motorista (chofer), mas por algum motivo ele conseguiu atender todos os requisitos. Graças a isso, ele conheceu Tânia, o amor da sua vida, para sempre. Tânia é fundamental na citada receita. Mas, calma, ainda preciso concluir a história sobre Nelson.
Em seu primeiro dia de trabalho como motorista, recebeu dois ternos pretos, duas meias pretas, um par de sapatos pretos, um número menor que o tamanho dos seus pés. Ele avisou a patroa sobre o tamanho dos sapatos, mas ela disse: -Vocês pobres reclamam de tudo, por isso não conseguem trabalhar! Então, ele não reclamou mais. Quando foi contratado tinha vinte e quatro anos, agora está com quarenta. Passou todos esses anos trabalhando, sempre com um sapato menor que os pés.
Já Tânia, segundo Nelson, aos dezenove anos de idade, tinha a beleza de uma lua cheia primaveril. Era, certamente, musa para qualquer verso que fale de amor, inspiração de lindas canções e belíssimas peças de teatro. Moça de classe abastada, tinha tudo aos seus pés, inclusive, a liberdade de ir e vir para onde lhe dava na telha, mas não tinha amor.
O coração de Tania nunca leu “História de Amor no Ocidente”, de Denis de Rougemont. Não sabia o quanto ao longo dos séculos vão adestrando as pessoas para que o amor seja sofrível, trágico, doloroso. Avessa a tudo isso, e aos papéis sociais que nossa sociedade impõe, ela trocou olhares com Nelson, e antes que alguém julgasse certo ou errado, a menina rica estava amando o homem negro, pobre e mais velho que ela, o que a sociedade burguesa vê como um crime gravíssimo, que não merece perdão.
Sabe, na alma não existem regras sociais, parece que ali tudo é permitido, e a alma de Nelson soube o que era o amor assim que olhou no olhar daquela linda menina, filha da madame, sem se importar com nada. Ele me confessou que não lembra de onde partiu o convite, nem como tudo foi combinado entres eles, mas que do nada, os dois estavam na praia. Chegaram lá antes do nascer do sol no horizonte e só saíram no entardecer. Não houve abraço, nem beijo entre eles. Passaram todo o dia a se olhar e conversar coisas que ele não lembrava bem. Acho que estava em transe de tanto amor. Há apenas uma fala que ele recorda, quando o sol ia se pôr, ela falou como quem canta um mantra: -Vê o sol caindo no horizonte? É tão belo que faz a gente entender toda a liberdade que a vida oferece. Então, ele pediu para ela explicar para ele o que é liberdade. Daí ela disse: -É uma receita simples, basta calçar sapatos que deixem os pés confortáveis, bem à vontade para podermos ir e vir para onde quisermos. É poder sair dando passos firmes, nos sentindo livres, leves, soltos e donos de nós. Então ele lembrou que, no trabalhava, há anos que caminha com os pés doendo, devido aos sapatos que os apertavam. Assim sendo, ele não tinha como saber o que era aquela liberdade que ela falava.
Depois desse único encontro, ele passou quinze dias sem saber notícias sobre ela. Chegou a pensar que ela estava andando livre em outros contos, com seus sapatos confortáveis, não tendo tempo para ele. Até que o porteiro do condomínio onde ele trabalhava o encontrou e falou que ocorreu uma tragédia. Um carro, dentro do condomínio, atropelou e matou a dona Tânia de Morais e Melo. Ao ouvir aquilo, ele sentiu uma dor que é incapaz de descrever. Foi para casa e passou o dia e a noite bebendo muito. Em um determinado momento de alucinações e dores, pegou uma máquina de serra, cortou todos os dedos dos pés e calçou os sapatos, mas não experimentou a liberdade. Acordou no hospital e agora está desabafando comigo.
Hoje, segunda-feira de 2040, continuo vivo, mas nunca mais soube nada do Nelson. Enquanto relato essa receita de liberdade, não me sai da cabeça a frase de uma música da banda Legião Urbana, L’Aventura: “Quando não há compaixão/ Ou mesmo um gesto de ajuda /O que pensar da vida/ E daqueles que sabemos que amamos?”
Que poeta maravilhoso , cheio de inspiracao, muito orgulho de vc.
Fenomenal,
supimpa por demais. Parabéns!!!
Tão interessante e reflexiva que me fez ler novamente