Muitas vezes “invisíveis” aos olhos da sociedade e das autoridades, os guardadores de carros são um típico produto da realidade brasileira. A prestação de serviços, ou mesmo seu trabalho informal, tornou-se essencial pelas ruas do País.
“Posso olhar o carro?”, “Vai uma lavagem aí?”, “Tem um trocado pra me dar?”. Motoristas se deparam diariamente com as abordagens dos guardadores de carros ou “flanelinhas”, que fazem parte do “ecossistema do trânsito”, em meio ao tumultuado trânsito das grandes cidades.
O que poucos sabem é o preconceito que sofrem essas pessoas, que atuam há décadas à margem da lei, sem nenhum amparo jurídico e muitas vezes sem atuação do poder público.
A vida sob o sol
Eles costumam oferecer serviços como limpeza do veículo ou vigilância, principalmente nos centros comerciais. Mas de onde vem essa “cultura dos flanelinhas” no Brasil? Por que muita gente aceita pagar por outros serviços parecidos, mas não vê os guardadores de carros da mesma forma?
As contradições dessa situação são mais complexas e têm mais nuances do que a aparência pode nos levar a crer. Há registros de que os guardadores de carro começaram a atuar no Brasil na década de 1930, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, e se expandiram para outras regiões a partir da década de 1960.
Além disso, entre os anos de 1960 e 1990, o Brasil passou por um processo de êxodo rural e as grandes cidades não absorveram toda a mão de obra disponível, o que acarretou no crescimento desses trabalhos informais.
Dois atores, dois problemas
Há quem compreenda e até aprecie o trabalho. Há quem simplesmente o considere extorsão.
A reportagem de O Potengi conversou com dois guardadores e alguns motoristas. Afinal, você pode ter motivos justos para se queixar deles, mas já parou para pensar quem são as pessoas que, em regra, conhecemos por apenas uma frase: “posso olhar o carro?”.
“Tem de haver fiscalização”, diz a médica Ana Luíza, ao entrar em seu veículo, próximo à clínica de sua propriedade no bairro de Petrópolis.
Para ela, a prática é vista como extorsão. “A não ser que o guardador seja cadastrado pela prefeitura, use jaleco de identificação e atue em área permitida pelo município”, pondera.
Pensamento igual é o do motorista de Uber Luís Abreu, que acha errado a ter de pagar para “não acontecer nada com seu veículo”, mas reconhece que esse é o único “ganha pão” de muitos. “Apesar de em alguns casos ter a sensação de sermos extorquidos”.
Haveria uma contradição em ter de pagar para usar espaços públicos que deveriam ser preservados pelos governos.
Já o empresário Eduardo Montenegro vê com tranquilidade a atividade e diz sempre cooperar: “Eles estão trabalhando e não vejo nenhum problema em dar uma gorjeta”, afirma.
Da informalidade ao sustento da família
A atuação dos guardadores e flanelinhas tem uma relação estreita com o processo de desemprego e a informalidade. É o caso de Yuri Manoel do Nascimento (foto), de 43 anos, que trabalha há 32 anos como guardador de carros e também realiza lavagem de veículos próximo ao Colégio Atheneu.
Todos os dias ele trabalha das 8hs às 20hs, chegando a sair em à 1h da manhã nos fins de semana. Yuri conta que o desemprego o levou a esse trabalho, mas afirma que é feliz por ter conquistado a amizade e respeito de muitos motoristas, e que assim consegue o sustento de sua família. Em média ele chega a ganhar R$ 30 Reais por dia em gorjetas. Yuri acredita que respeito e confiança são primordiais. “Aqui ninguém obriga o motorista a pagar por nada”, frisa.
Por outro lado, Yuri conta que o trabalho de guardador é coisa séria. “Nós temos muitas responsabilidades. O motorista confia no nosso trabalho para não ter o seu carro arranhado ou até mesmo furtado. Graças a Deus, nunca um veículo e nem mesmo pertences foram furtados no meu setor”, enfatiza.
Júlio César de Amorim, de 54 anos, trabalha há 27 anos próximo a restaurantes e clínicas no bairro de Cidade Alta. E, como Yuri, a falta de oportunidade o levou a trabalhar como guardador. Para Júlio, hoje o seu sustento vem do trabalho de guardador de carros. Em média, ele fatura mil reais por mês, em uma jornada de trabalho diária que vai das 7 às 19 horas. Mesmo assim muitos motoristas veem com desconfiança o seu trabalho.
“Faz 27 anos que trabalho aqui. Todos já me conhecem, mas às vezes somos vistos com desconfiança por alguns motoristas que sequer dão um bom dia ou boa tarde”, se queixa Júlio.
Regularização e fiscalização
Um decreto de 1977, assinado pelo então presidente da República, Ernesto Geisel, regulamentou a profissão e exigiu registro trabalhista e uso de cartão de identificação.
A própria Constituição Federal de 1988, em seu inciso XIII do artigo 5º, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil a liberdade de escolha e execução de qualquer trabalho, ofício ou profissão de acordo com o interesse e a vocação de cada pessoa. Dessa forma, se tal trabalho pode ser exercido por esforço próprio, o Estado não pode proibir ou constranger a escolha do indivíduo.
Além disso, para que a liberdade profissional seja protegida, as ações do trabalhador não podem ir contra as leis, e devem se guiar pelas diretrizes das profissões que foram regulamentadas.
Dentre as poucas capitais a regularizar o trabalho dos guardadores estão Rio de Janeiro e São Paulo. Outras capitais, como Recife e Belo Horizonte, realizam o credenciamento dos guardadores – no qual o motorista decidirá se quer ou não pagar pelo serviço, que não tem preço estipulado. Por outro lado, em Joinville (SC), o poder público prevê multa de até R$ 2 mil para flanelinhas.
Em Natal, não há uma lei municipal específica que regulamente ou mesmo fiscalize o trabalho dos guardadores de carros. Procurada pela reportagem, a STTU – Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana – confirmou que não há uma fiscalização por parte do órgão, mas que aguarda uma regulamentação para qualificar os profissionais que atuam neste setor.